Ruído Manifesto entrevista Joyce Prado
A coluna “Ruído Manifesto entrevista” objetiva pensar o lugar, o não lugar e o entrelugar da arte em nosso tempo conturbado – afinal, qual tempo não o foi? Para isso, apresentamos uma série de entrevistas com artistas, pesquisadores e críticos do Brasil e de outros países, que se interrogam sobre a temática em diversas áreas do conhecimento
Joyce Prado é formada em Comunicação Social: Rádio e TV pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e especialista em Roteiro Audiovisual pelo Centro Universitário SENAC.
Desenvolve trabalhos na área de cinema documental, ficcional e publicitário, já atuou nas produtoras: Gullane, Produtora Associados, Sagaz Filmes, Geral Filmes,Timore AV e Cinema Zungu.
Atualmente, é Diretora Administrativa da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN) e sócia-fundadora da Oxalá Produções. Principais trabalhos: diretora da websérie Empoderadas (1a temp.), direção dos curtas Fábula de Vó Ita (2016) e Okán Mimó: Olhares e Palavras de Afeto (2017).
***
Ruído Manifesto entrevista Joyce Prado
RM: Como definir o cinema negro em um tempo no qual o “somos todos iguais” refere-se mais a uma postura que pretende silenciar vozes não brancas que reconhecer o desequilíbrio em relação às oportunidades e ao reconhecimento?
JP: Fico presa a palavra definir e como a minha primeira reação é pensar que definição só existe uma, pensar em definir o Cinema Negro me leva pra algumas camadas: objetiva, subjetiva, linguagem, temática, coletiva…dentre outras que atravessam o fazer Cinema Negro.
Pensando o que foi pontuado na pergunta, o Cinema Negro segue sendo gritos com palavras de ordem em códigos de imagem e som, segue sendo manifestação, campo de batalha, espaço de disputa, reivindicação, resiliência, reestruturação, reconhecimento, encontros, projeções.
Relacionado à comunidade negra, realizado, fundamentalmente, por e para pessoas negras e o qual retrata de maneira atenta e complexa as subjetividades e vivências negras.
O período que a pergunta relata, não nos apresenta novos desafios e, sim, nos alerta para a falsa ilusão da integração positiva da estética negra pelo mercado do entretenimento, da moda, ou seja, da indústria cultural.
RM: Na 3ª Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, realizada em novembro de 2018, dos 21 filmes em competição, 16 tinham mulheres na direção. A mulher protagoniza o cinema negro no que tange à arte, à defesa da diversidade e à resistência cultural?
JP: O Cinema Negro se mantém muito pela articulação coletiva e a interação entre pessoas de distintos gêneros, classes e territórios; um movimento que observo desejar um protagonismo coletivo e com muitas ações de co-autoria.
Fico refletindo sobre qual é a presença de mulheres negras em produções de maior orçamento – longa-metragem, séries, telenovelas, cinema publicitário – e como nestes espaços já há alguns anos tem homens negros atuando na direção e roteiro , enquanto, as mulheres negras não estão presentes ou, mais recentemente, inicia a se ter uma, duas …três, número pouco expressivos para nós quanto população.
RM: A pergunta “quem tem medo do cinema negro?” pode conduzir a duas reflexões imediatas: a presença negra no audiovisual descortina a desigualdade racial e a existência de forças que interditam espaços artísticos e comerciais para profissionais negrxs. A partir disso, é fundamental afirmar que o cinema negro é, antes de qualquer definição, um ato político, com uma função social indissociável?
JP: Concordo com as afirmações e penso que a maior parte dos profissionais envolvidos no fazer Cinema Negro se identificam com este ato e função, conforme nos aprofundamos em nossas reflexões de realizadores mais conseguimos ampliar e compreender o impacto do Cinema Negro como ação Política que provoca, instiga e mobiliza sociedade, Estado e Mercado; paralelamente, suas produções interferem em processos de formação de identidade, organização social, mobilização social, dentre outras milhares de possibilidades de impacto inimagináveis.
Ao mesmo tempo, há o espaço de subjetividade dentre cada realizadora e realizador que busca compreender, também, suas perspectivas de vivências negras dentro desta sociedade e quais são as inquietações e questões que deseja tratar em tela; no meu caso isso fez com que a realização cinematográfica buscasse encontros e reencontros com minha historicidade, ancestralidade e humanidade. Fez com que hoje o Cinema Negro se tornasse um processo de reconhecimento, uma possibilidade de auto-reconhecimento de uma população sobre si e se pudesse traduzir em imagem seria: uma pessoa negra em frente a um espelho fragmentado, ela olha o seu reflexo desconexo e fica, permanentemente, se olhando e buscando caminhos para chegar a sua imagem não-fragmentada. O Cinema Negro é a nossa oportunidade de nos olhar, nos rever, nos compreender, elaborar sobre nossas experiências, de maneira, contínua, incessante e permanente….assim espero. Precisamos de ano para reaprender a nos ‘ver’.
____________________
Fotografia: divulgação