Ruído Manifesto entrevista Regina Dalcastagnè
A coluna “Ruído Manifesto entrevista” objetiva pensar o lugar, o não lugar e o entrelugar da arte em nosso tempo conturbado – afinal, qual tempo não o foi? Para isso, apresentamos uma série de entrevistas com artistas, pesquisadores e críticos do Brasil e de outros países, que se interrogam sobre a temática em diversas áreas do conhecimento.
Regina Dalcastagnè é pesquisadora e crítica literária brasileira. Leciona atualmente na Universidade de Brasília (UnB).
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Ruído Manifesto entrevista Regina Dalcastagnè
RM: A primeira pergunta é dessas que são repetidas a todo momento, dessas que não saem da cabeça de quem de algum modo lida com o vasto campo das artes: como criar ou fazer crítica literária no 2019 de Jair Bolsonaro presidente?
R.D.: Escrever sempre foi um gesto de resistência para alguns grupos sociais – mulheres, negros, indígenas, pobres, trabalhadores –, mas hoje, quando vemos a palavra sendo oficialmente tomada de forma tão vil, para incentivar o ódio e perseguir aqueles que pensam ou vivem de forma diferente, acho que escrever e refletir criticamente sobre a escrita é uma responsabilidade à qual nenhum de nós pode se furtar. O momento é de urgência. Por um lado, precisamos preparar respostas, poéticas e políticas, aos impropérios e absurdos que eles despejam por aí, sem parar. Por outro, temos que dar continuidade a projetos que não sejam pautados apenas por essa insanidade que estamos vivendo. Não acredito que a gente consiga se equilibrar, de fato, entre uma coisa e outra, mas faremos o que for possível. Só não dá para ser indiferente, porque a indiferença, como dizia Osman Lins, em Avalovara (de 1973), é só um disfarce da cumplicidade. Abel, o protagonista do romance, aflito como estamos hoje, buscava respostas, dentro de si ou da noite, e se dizia sujo e sufocado, nos intestinos de um cão: “Angustia-me, claro, reconhecer que a sombra da opressão infiltra-se nas minhas armações e envenena-as. Por outro lado, isto me causa uma espécie de alegria negra. Que se salve, das tripas, o que pode ser salvo – mas com o seu cheiro de podridão”. Marca de nosso tempo, esse cheiro estará presente em tudo o que produzirmos agora, dizendo quem somos e de que lado lutamos.
RM: Há nas últimas décadas diversos movimentos no Brasil que procuram repensar o cânone a partir de uma proposta de pluralidade socio-racial, de gênero (cis e também trans); outras contestam a própria manutenção de qualquer cânone; outras buscam fortalecê-lo como antídoto a uma suposta derrocada das artes. As possibilidades e direções são muitas. Como você avalia as direções tomadas na questão da representatividade nas artes brasileiras? Chegou-se a algum lugar, há pontos a se comemorar?
R.D.: A crítica ao cânone e seus vieses é importante, mas acho difícil descartar a ideia de termos um conjunto de obras compartilhadas, que nos façam ter um terreno comum e nos permitam dialogar dentro de uma mesma tradição literária. Sem isso, estaremos caminhando na direção de fechar cada grupo em um gueto – e penso que o objetivo deve ser o oposto, romper as paredes que ainda confinam muitos em guetos. Para que a gente possa alcançar isso, que poderíamos chamar de “cânone inclusivo”, temos em primeiro lugar que entender que se trata sempre de uma construção social, feita a partir de escolhas socialmente estruturadas e disputas, e não a emanação de um “literário” transcendental qualquer. Por isso não me identifico com a noção de que seria a proteção contra a “suposta derrocada das artes” a que você se referiu. Sendo assumido como espaço de disputas, recusando a imagem de que a literatura é um campo pacificado e colocando em pauta seus próprios critérios e possíveis vieses, esse “cânone inclusivo” precisa ser necessariamente um cânone autorreflexivo e em movimento. Parece contraditório, já que “cânone” em geral se entende como algo imutável, mas o que proponho é que a história da literatura caminhe sempre junto da história dos critérios de valorização literária.
RM: E por último: há ainda espaço no Brasil para a criação de novos grandes monumentos literários (em relação ao reconhecimento social que obtêm e também ao tamanho pura e simplesmente), como um Avalovara ou um Grande Sertão: Veredas, ou o momento é agora de fragmentação?
R.D.: Acho que não dá mais pensar em termos de monumentos literários sem refletir sobre de onde eles vêm e a quem se destinam. Um romance como Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, por exemplo, talvez se enquadre nessa ideia. É imenso, tem a pretensão de abarcar um longo período de nossa história, com uma perspectiva pouco explorada. Foi muito bem recebido pela comunidade acadêmica, especialmente aquela que trabalha com questões de gênero e raciais, que já lhe dedicou inúmeras teses e dissertações. Será suficiente para lhe garantir um reconhecimento social futuro? Ou, por por ser uma obra negra e feminina, continuará sendo marcada como apenas um recorte muito parcial de nossa vida cultural? Acho que ganhamos se aceitamos que todas as obras são necessariamente parciais, já que frutos de perspectivas específicas, e que algumas só transitam como universais porque vêm de posições privilegiadas (masculinas, brancas, de classe média ou alta, heterossexuais) que apagam simbolicamente sua particularidade. Sendo assim, podemos reconhecer Um defeito de cor como monumento literário, da mesma maneira que Avalovara: obras parciais, porque humanas, mas abrangentes, penetrantes, sensíveis e honestas.
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Fotografia: divulgação