Seis poemas de Antonio P. Pacheco
Antonio P. Pacheco é um daqueles escritores que vivem à margem do grand monde das artes e da cultura local e nacional. Não é um beatnick, mas também não se alinha com o mainstream. Escreve por uma imposição genética, que o fez herdeiro dos escribas apócrifos e ghostwriters malditos. Formado em Comunicação Social (Jornalismo) pela UFMT, escreve poesias, contos, crônicas, artigos, roteiros, ensaios e romances desde que se entende por gente. É natural de Aragarças (GO) e está radicado em Cuiabá há mais de 30 anos. Antes de se engarranchar na curva do rio Cuiabá, fundou em 1983 com outros poetas e escritores a União dos Poetas do Medio Araguaia (Unpoema), coletivo que desenvolveu intenso trabalho litero-cultural em Barra do Garças e região leste de Mato Grosso. Tem publicado os livros: Retalhos (poemas, 1984) e Punhal de Dois Gumes (contos, 1994), ambos editados pelo selo independente Uirá Edições. Participou ainda das antologias Poetas do Café (2006), da Editora Grafite, de Bento Gonçalves (RS), e Informação em Tempo Real (1999), da Editora Adufmat, de Cuiabá (MT), livro que reúne artigos sobre comunicação e mercado de trabalho. Recentemente teve um conto escolhido para compor a coletânea de literatura medieval Cronicas de Ferro e Fogo (2019) da Lura Editorial (São Paulo-SP), obra lançada na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. No prelo, para vir à luz ainda este ano, tem o livro Versos Náufragos em Rio sem Margens, edição Bilingue Portugês/Espanhol da Carlini&Caniato Editora (Cuiabá -MT). Tem ainda publicado contos, crônicas, poemas e artigos em revistas e jornais impressos e em plataformas digitais desde o início dos anos 2000.
Seu trabalho pode ser conferido nos blogs (http://pencaliteraria.blogspot.com) e (https://www.recantodasletras.com.br/autores/antonioppacheco). E também nas suas redes sociais: (https://www.facebook.com/appacheco); (https://twitter.com/Appacheco1) e (https://www.instagram.com/appache10/).
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Mapa de Eros
Antes que invada o dia a aurora
Que venha brilhar nos teus olhos
A estrela da manhã radiosa
Bússola guia das borboletas
Em desertos de sonhos e calmas enseadas.
Na praia sedosa do teu colo
Recosta em paz a tez pálida
O poeta andarilho sem pátria
Efeméride que a brisa dispersa
Mera imagem num espelho d’água.
Guarda alma o silêncio pétreo
O segredo das verdades inconfessas
Que a ponta dos dedos frêmitos
Desenha-te em carícias sobre o ventre
O mapa de Eros
Tatuagem gravada com beijos ardentes
Nas pétalas rubras da rosa
Ao sul do jardim que habita
Tua livre alma de mulher
Soberana do próprio querer.
*
Náusea
O sorriso torto
Na face disfarça
A profunda náusea
Esta ânsia de tudo
– Impiedoso embuste
O desejo
Fria lâmina
No peito cravada
Cimitarra afiada
– Em equilíbrio precário
Da vida e do mundo
Apocalíptico beijo
Amantes improváveis
O presente e o futuro
– Amanhã aziago
Nos canteiros do tempo
Florescem ervas do medo
Paixões daninhas
Esperanças vãs
– Falsas alegrias
Ao largo do amor
Naufragada a nau
No vácuo do não-ser
À margem de tudo
– Restará a saudade
Triste e mudo
No porto do ontem
O corpo abandonado
Ébrio de sonhos
– Nauseante realidade.
*
Cacofonia
Um sino
Um grito
Um chiado
Um gemido
Tecem na tarde
Uma rede infinita
De diálogos diáfanos
Aos incautos inaudíveis
Rangidos
Retinidos
Sibilantes
Musicais ruídos
Códigos sinfônicos
Encontram-se no ar
Forjando no tempo
Sonoras catedrais
Um pássaro
Um estampido
Uma abelha
Uma canção
Dissolvem os silêncios da casa
Inundada de ausências
Convidando-nos a dançar
No inverno tropical
Uma risada infantil
Um latido feroz
O farfalhar da mangueira
O gotejar da pia
As horas que se esvaem
Na composição cacofônica
Encerram em allegro
O ciclo do ócio
– Em um dia de agosto.
*
Um dia, talvez
Além das sombras que há em mim,
Talvez, haverá um campo e um jardim,
Uma fonte e um abrigo,
Onde o meu riso triste se oculte. Talvez.
Quem sabe não mais os sonhos apenas,
Talvez, sejam os meus passos, algo incertos,
A levarem meu corpo, algo tímido,
Ao teu lago de êxtases? Talvez.
Haverá sol amanhã, diz a andorinha,
Haverá manhã, sussurra a brisa. Talvez.
Pelos caminhos, deixo segredos e medos,
Pistas para que um dia, me encontres. Talvez.
*
Ira Santa
Um homem sem sonhos
Tem apenas dois destinos
– Matar-se ou se tornar assassino.
Tirem do homem sua esperança
Ele se fará uma bomba,
Personificará uma lança.
Faça-se do homem um miserável,
Desempregado, esmoler sem dignidade,
Ele se fará a quem oprime
A chaga mortal, a última praga,
Juiz e executor da sentença final.
Eis como à luz do alvorecer
O homem amável e cordial
Pode ser fera, monstro incontrolável,
Na penumbra do anoitecer.
Nenhum inocente ou justo sobrevive
Escravo acorrentado, cidadão sem classe,
Se lhe arrancam à força a civilidade,
Se lhe matam na alma a humanidade.
Em tempos como estes
Há que se petrificar o amor ágape
E liberar do peito às mãos a ira santa
Na obscuridade desta era
Impõe-se ao mais pacífico dos homens
Pegar em armas, derramar sangue
[O seu e dos tiranos]
Nas trincheiras das ruas e praças
Para defender a integridade humana
Tão humilhada e escassa
– Ave, liberdade!
*
Emergência
Em diálogo com o poema
“Intervalo Comercial”
de Marta Helena Cocco
Ama sujeito desatento, ama
Pois que o amor
É emergência terminal
Ama antes que venha a morte
E a alma alce vôo
Para habitar n’algum vazio sideral
E quando queira amar
Já seja tarde e não mais haja corpo
Em que habite
A felicidade volátil
De um amor fortuito
Bem mais veloz do que um míssil
Ama e ama já e de qualquer jeito
Que lhe pareça bom amar
Ou mesmo de que sejas capaz
Sem meios termos e pejos
Ama antes que venha a solidão derradeira
E do peito lhe arranque
A bateria quase seca
De um amor tardio e raquítico
Mais frágil do que o ancião solitário
Com a pele flácida e cabelos ralos
Que olha o infinito nada
Do lado oposto da janela
Naquele frio asilo da esquina
Ama sujeito, ama mesmo sem meios
Sejam materiais ou financeiros
Pois que o amor é rústico
Naturalmente humilde
E cego como os morcegos
Não liga para métodos
Ou delicados e elegantes
Rapapés e maneirismos
Venenos mortais para
Cupidos e Eros
Apenas vive e ama,
Amigo, ama intensamente
O instante eterno mesmo que dure
O amor um único segundo.