Seis poemas de Augusto Guimaraens Cavalcanti
Augusto Guimaraens Cavalcanti é poeta, ensaísta e pós-doutorando do PACC\Letras da UFRJ, tendo publicado, entre outros: Poemas para se ler ao meio-dia (2006, 7Letras), Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (2012,7Letras) e Máquina de fazer mar (2016, 7Letras).
***
TROVAR ESCURO
Nem a terra firme de uma ilha,
nem um território sedento
de resolução
Ruas de fogo e ruas de carne,
a origem diminuta,
a mínima pátria
– ali, um homem poderia retirar:
dos jardins, todas as flores ébrias de peso;
do corpo, todo o sal dos mares –
Entre o ser e o parecer,
o limite da linguagem é o limite do espelho –
margens que atravessam outras margens
Para que a rua noturna se fixe
na placa sensível do dia –
a noite é um sol de ausências
e, todavia, um sol
*
MARÍTIMO N.3
Infinito por todos os lados,
a todo momento inesgotável,
o mar desfaz antigos mapas
Seu inconsciente jamais adormece, suas matérias nascentes
ruminam as mesmas verdades de palavras vivas
pela imprevisibilidade das águas
(O mar irá passar por debaixo das casas,
o mar irá sangrar seus pássaros
e atravessar as pálpebras remotas das distâncias)
A todos os milagres translúcidos,
vagalumes trazem um mar fortuito em cada olhar,
como a imagem de um maestro insensato regendo o mar
De eco em eco – sem instruções de uso
as palavras sempre selvagens,
os nomes de todo incômodos
Com a sobrevivência dos vagalumes,
por latências de estruturas,
por esboços de mais polifonias estruturais
Às bordas das suas margens
as palavras iniciais se unem às palavras finais –
pela verdade universal dos corpos,
com o jogo do desvio e da norma
À saciedade dos tempos,
contemporâneo de todas as idades,
o mar sempre a escapar
– só o mar não tem memória
*
NOITE AMERICANA
Entre um salto e um sobressalto,
sem o constrangimento das molduras –
quando o dia ameaça a noite,
para desespero de místicos e ateus
Presença irreparável de duração,
um pulsar, um corpo,
a noite americana se transfigura
em falsa realidade solar
Incandescente de azul, a noite americana
se evidencia em pós-produção,
pelo ritmo inflamável de cinematógrafos e
outros cinemas transmutáveis
Para as suas dissimulações de existência
deve-se abandonar o enquadramento do céu
e reenquadrar o menor esboço de acontecimento
à luz de uma luz menos afobada
Por algum erro novo,
pela eterna dissonância dos astros,
ao menor partido das coisas
– todos os sonhos correm para o mar
*
OS CATAVENTOS
Numa estrada emergencial de carne,
pelo fogo que a tudo mistura
e a tudo propaga
Num céu urgente de relâmpagos,
o fogo tem as formas de suas carícias,
apesar de todos os objetos e dicionários
Entre o enigma e a ciência,
graves territórios de palácios ausentes;
selvas semeadas de cólera
Refletidas as luzes não trazem respostas,
tudo o que brilha desconfia do fogo,
os pássaros se confundem com os ventos,
a natureza luta contra a noite
Cidades de ângulos tardios,
entre dois erros e dois espaços,
a meio caminho de tudo,
o dia multiplicado pela voz da tempestade
Olho a olho, cofres que não guardam
o descuido infinitesimal dos dias –
desde tempos sem Tempo,
os cataventos sucedem às guilhotinas
*
AURORA
A despeito da resistência das formas,
planetas rotativos lutam por liberdade –
a bordo de um vasto carrossel cósmico,
na pele adormecida da cidade
Com a mesma chuva oblíqua
de objetos sem nomes,
selvagens corações transfigurados
se aproximam das geografias provisórias
Esculpido o tempo dos vencidos, os vencedores
partem para outras despedidas de pandora:
poeiras acumuladas em estrelas atrozes,
vertigens prolongadas de auroras
Mais cedo do que antes,
à revelia das armaduras do olhar,
mapas de sóis transbordados,
estátuas desabadas pela noite
Pela língua indomesticável da aurora
(encharcada de vida,
desalentada de pressa)
certos edifícios se curvam ao pó
Desde séculos de séculos
a aurora é um coletivo de pássaros
Desde tempos sem inícios
as flores triunfam sobre os furacões
*
NOUTRA LUZ
Noutra luz banhada
pela partilha de um outro sol
a imperfeição do fruto
se deixa escandalizar
De si desassombrada
(entre o azul e o desvio para o azul)
em seus improvisos de ruínas
a noite por toda a parte clara
Por dissonâncias do efêmero
e transversalidades de escuro
a poesia anárquica dos deuses
se deixa atravessar
De estranheza em estranheza
partindo de primeiros esboços
um farol obscuro
brilha por sua ausência
Nas areias da História
no coração de uma cidade estrangeira
ilimitado a qualquer supremacia verbal
o silêncio de Cage e Rimbaud