Seis poemas de calí boreaz
calí boreaz nasceu no outono, em Portugal. De origem parte do Ribatejo, parte da Beira Baixa, estudou Direito em Lisboa em meio às noites de fado, depois aventurou-se a leste, viveu um tempo em Bucareste, onde estudou Língua e Literatura Romena e também Tradução Literária, até que atravessou o Atlântico rumo ao sul, no virar de 2009 para 2010, para viver no Rio de Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do Teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan (ed. ASA, Portugal), de Norman Manea, e Lisboa para sempre (ed. Thesaurus, Brasil), de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul (ed. Urutau, dez. 2018), com posfácio de João Almino e ilustrações de Edgar Duvivier e A. Martins-Ferreira, tem uma extensão fotonarrativa no instagram @caliboreaz. Seus poemas foram expostos em forma de videopoemas no Hyderabad Literary Festival 2019, na Índia. Os poemas abaixo fazem parte de outono azul a sul.
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efeito kahlo kuleshov
estou imóvel
suspeito que me tornei um quadro
com debrum de areia pequenas conchas
e pontas de cigarro
à minha beira está o mar em março
ele desatentamente cospe nos meus pés. e através
de mim desamarro o vendaval morse
/ não escutes. ainda estou imóvel
sobre mim-onde há uma constelação
de abutres como uma indecisão boiando
aos fundos de mim-quando há a ficção
citadina inacessível
entre o tempo da água e o destempero do asfalto
a destempo tento — ainda — criar poesia
/ ay llorona / olhos negros /
e crio silêncios. basaltos. silêncios
a fazerem sala às tuas perguntas
no horário nobre do despresente
faço um esforço — me recorto
dou um passo na via láctea
meus pés imprimindo a marca de água
e enquanto me arranco à imobilidade
/ as tuas perguntas /
a cidade se petrifica
basaltos. silêncios. solidões acústicas
presas na véspera — ou num dia advindo
a gastarem-se companhia
no horário nobre da vida
que é a fina presença da morte
agarro com força a escuridão
e dou mais um passo
o garoto de short azul na areia sentado
ficou ali com o olhar perdido no desenho de um nome
a cadeirante com o paninho de chão ao ar erguido
ficou ali com a mão esperando os 4 reais
o velho de 88 anos cansado demais
ficou ali com a expressão do primeiro estremecimento
do infarto
passo por todos passando neutra por mim mesma
vou direto à tua porta
enquanto junto pedaços
em morse
amar-se
em março
um amor se
maio
ainda for
tempo
estou batendo. batendo: atendo?
*
toda varanda quer ser um navio
escrevo como quem se abrevia
às coisas:
vou ali e já volto
só uma saidinha
pra arejar, ar
no dia em que sumi no mundo
(nasci de parto mortal e mais
ninguém me viu)
ali comecei discreta a construir uma varanda
no planeta
abenluada
solidão
repente
a varanda do planeta
ficou escuramente maior
maior que o próprio planeta
não cabe na solidão
nem mesmo nestas
palavras verticais com que vou
vasculhando
oxigênio enquanto
empurro com todas
as fraquezas o portão
de parto que ainda me aparta
dos olhos que me escrevendo
me expandiram
abensomada
ausência
dia destes ainda sou capaz de zarpar, ar
com eles
numa distração do silêncio
na varanda desarvorada
enfim feita navio
*
#dia25 | falha geográfica
esta noite não sei
o mundo, arrepiado,
está entrando aos trambolhões
todo pela rachadura que se abriu
à latitude -22.9 com longitude
-43.1 ali mais coisa
menos coisa na altura
do posto 5 mais concretamente
a 20 passos da linha do Atlântico
exatamente no ponto em que
é possível caber entre braços
toda a paisagem indecente
quântico interstício
de tudo
que é íntimo e ausente e eu não sei
o mundo, arrepiado, está
todo indo por ali abaixo
num vício biográfico
danado
o pior minha gente
é que a fenda tem luz própria
é toda colorida de açaí e acerola
e tem um barulhinho
lá no fundo
espera aí
é uma caixa de fósforo
tem alguém batendo nela
a cadência nova do samba
o mundo tá doido
o mundo tá doído
quer chegar junto
chega mais cabe mais
e não há controle
não há respeito
é trambolhão mesmo
o mundo está desaparecendo
aos poucos esta noite
a rachadura fechará
pontualmente antes que eu chegue
para ligar o dia
e avaliar os danos
é assim desde que a geografia nos falhou
—
ps: este domingo
passa lá no posto 5
para eu te ver passar
vou estar lá na areia
a 20 passos da linha do
atlântico
com os pés firmes
no magma azul
pulmões expandidos para a avalanche
quântica de oxigênio
de binóculos
ou telescópio
só para te ver passar
no equilibrismo óptico
de te encontrar entre milhões
de meteoros secundários
e depois, o mundo
o calendário o mar os luzeiros
talvez se entendam
vou estar lá na areia
para te ver passar
*
fóton
isso era no tempo em que
a luz de maio entrava
pontualmente
às quatro da tarde naquela
avenida da Urca com aquela
soberba dourada bêbeda de américa
e se refratava nos recortes
insuspeitos dos troncos dos coqueiros
do alcatrão malemolente
para finalmente se alojar
em algum indício corpóreo
de uma microexplosão
e durava quatro minutos
precisamente — a luz dos maios rotos
e logo mais à frente
o verde dos morros
a respirar nuvens
isso era no tempo
em que maio explodia e éramos jovens
de nós — e logo esplendia
pelos ralos tudo que escrevíamos
com luz
*
a(l)titude
o vento que se
ouve dentro:
invento
*
dedicatória
vai ficando tarde
tardo. estou abotoando
minha coragem
mudei de casa, de estação
mas de saudade não, não mudei
bem tentei, nos classificados nos bondes
mas teu olho esquerdo é tão
diferente do teu olho direito
ninguém mais desobediente
do que o confuso de peito
está ficando tarde. ok.
tenta apreciar o manuseio de horizontes
o plantio de um novo planeta
ainda intermitente
antes, te dedico a leve chuva
que rodeia os templos