Seis poemas de Divanize Carbonieri
O livro Entraves, de Divanize Carbonieri, apresenta 30 poemas, sendo que esse é também o título de um poema individual que concentra de forma mais intensa uma das principais temáticas exploradas, que envolve as noções de empecilho, obstáculo, dificuldade. Além da temática, a própria concepção poética é marcada por essas ideias, constituindo uma espécie de “poesia em traves”. Os poemas são caracterizados por certo travamento na leitura e no que seria a produção de significados diretos. O leitor é convidado a oferecer as chaves que abrirão as travas do discurso poético, possibilitando uma multiplicidade de leituras. O livro foi agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura em 2017. Os poemas abaixo integram essa obra.
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ENTRAVES
no afã de desligar o liquidificador
deslocou o tendão de aquiles
depois de ter lesionado a coluna
ao acionar o interruptor da lâmpada
tendo dilacerado a hérnia inguinal
ao colidir com a máquina de lavar
foi só estancar a hemorragia fluida
e distensionar o músculo deltoide
para desarrolhar o gargalo oblongo
espirrando o espesso licor no olho
até conter a lágrima no pó compacto
mais uma quina a estraçalhar seu pé
um talho rasgado em plena epiderme
não é qualquer falha de caráter que torna
arrastado o existir por entre trastes
é o completo sequestro da sanidade
que arruína para sempre toda a chance
de se desentulhar os últimos entraves
*
ANIMAIS
os animais dessas ruas de Cuiabá
rumam amansados pelas encruzilhadas
aboletados nas lombadas das calçadas
seguem sempre ladeados por outros cães
as crias da mesma ninhada e suas mães
correm enquanto perseguem algum gambá
os primos entre grades gritam com ciúme
chacoalhados do sono pelo incômodo
de acompanhar seus semelhantes em pleno êxodo
os gatos sabotam os planos por preguiça
são senhores do espaço em luta que encarniça
enquanto a luz passa sobre todos incólume
depois vem a sombra grande que se estende
silêncio sereno de vielas e artérias
modos rápidos de deixar suas matérias
ou dolorosos e demorados instantes
de corpos ainda maleáveis e pulsantes
cortada para sempre a corda que os suspende
*
ESPORÓFITO
o machado no pescoço
osso passado na lâmina
a anima solta e valente
rente ao nodo da garganta
se agiganta mais ao golpe
torpe mas gentil da foice
que ceifa a linfa da vida
entretecida na carne
no cerne rosa da fé
um igarapé de sangue
mangue verde do espírito
esporófito da sina
assassina do vivente
*
PAQUIDERME
a pele do paquiderme
padece na secura do deserto
ranhuras prenhes de pó
sulcos desenhados como
quadrados na epiderme
enquanto pasce ressequidos
ramos sem se impacientar
em súbita e sibilante sequência
na sediciosa intempérie
uma tempestade de areia
delineia-se diante dele
sente o impulso de desertar
mas empaca apalermado
tomado de paralisia suicida
permanece parado e quieto
em pouco tempo se alquebra
enterrado no granito cristalino
sucumbe na grande estrutura
arquitetônica de seu corpo
uma catedral de carne rota
*
CARCOMA
macerando a rama ressecada
para ministrar o remédio
amargo que mitiga a moléstia
engole a mistura malsã
um golpe a mais na renda da
moleira assenta o traumatismo
essa garapa de sangue que
rompe a teia sã do destino
deslinda a saga da menina
na raiz de uma mangueira
todo radical é como uma rima
que irradia o tema da grandeza
cada gomo roído da moranga
rememora a sua redondeza
anterior à carcoma da carne
*
TRAMELA
deus dá o discernimento
e o desatino
o talento e o desânimo
desanda o touro
adianta o domador
deus abandona a matilha
deixa abater a mãe
a ninhada tomba à mercê
dá sem merecimento
minora os mansos
aumenta os dias dos maus
deus tira o mais amado
de quem amou melhor
aquele que maltrata permanece
tendo a quem atormentar
deus é a tramela que impede
o padecimento de ser atenuado
mas permanentemente se pede
sua intercessão e destrançamento