Seis poemas de Irene Severina Rezende
Irene Severina Rezende possui Doutorado em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo: USP (2008). É Mestre pela mesma Universidade e na mesma área. É professora titular da Universidade do Estado de Mato Grosso. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: fantástico, absurdo, literatura brasileira, irreal e literatura africana. É autora dos livros de poemas Prolongamento publicado (2005), (2008) e Páginas Rendadas colhidas ao amanhecer, ISBN -978-85-914180-0-8 (2012), além dos livros teóricos O Fantástico no contexto sócio-cultural do século XX: José J.Veiga (Brasil) e Mia Couto (Moçambique) (2010) e No chão do Araguaia, li meu mundo (2016). Desenvolve a Pesquisa: “A Literatura Fantástica como forma de representação da Opressão e da Utopia Revolucionária, na América Latina”. Participa do Projeto de Pesquisa: “A Literatura Infanto Juvenil – poesia e prosa”.
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SER DE BRINCADEIRA
Vive em mim,
uma madrugada.
Enrolo-a com
saltos de brincadeiras:
braços bordados em tatuagem
de silêncios que deslizam
depois da força do sol;
restam queimaduras
e peixes mortos nas telhas;
olhos cheios de azedume
que cobrem a serra,
trabalham na folha do buriti…
a pintar quadros de luz…
a pachorra, num dois de nada,
circula em serpente,
a manhã está forrada de tamarindos
quando atravesso a grota,
me esqueço nos recantos…
porque é Junho e tenho cor de loba!
*
BIOGRAFIA II
de verdade,
-sou a menina catarrenta da beira da ponte,
onde já passou boi, passou boiada.
Sou braço do rio boiadeiro
que só nos deu lambaris,
e a vida espalhou;
sou a Irene do Dimas
que teve sobrancelhas de taturana,
que capotou fusca,
deu cavalo de pau,
bebeu cachaça,
deu birra pra não lavar prato,
foi galdéria;
hoje, mulher-dona
atravessei o rio, e
nas dobras da rua, sou a mãe
da Léa, da Laís, do Leandro/Gugu,
a avó/mãe do Leonardo, da Letícia e Rafael;
(todas as horas de todos os tempos
– guardo uma tristeza imensa do sertão),
pois meu destino de gameleira
tem pomos dourados e cantos de contos;
Sou os rios enflorados
e os telhados de sapé do Araguaia;
heroína e vítima da literatura,
entre versos e imagens
vou sendo
*
Um dia na roça
brilho da fonte oculta tolices
há doçura até na quinta-feira
tarde no Araguaia é mais bonita
que a do Papa:
uma pipa fura o céu
é Manoelito a brincar de nuvens;
lua borda sombras
no meu quintal
o tempo soa grave;
sangue que mancha nossas violas
só de amor…
triste voz do cantor
chora mágoas impossíveis,
colhe aromas de azaléias e
metamorfoses dos prados de Anacreonte
perde o caminho do caminho
nunca irá à Roma
nem verá o Papa
mas pescará no Araguaia!
e nos alforjes
bordados de flores e fantasia
há de botar seus bacuris
*
CRIANÇA
já sonhei viagens de descobrimentos:
acreditava no latim da igreja;
pra chegar nas grimpas
é preciso ser valente;
ouvia todas as queixas da terra
e fui anotando o indizível
pra depois tirar poesia
nunca conheci licores chineses
bebi foi água de cabaça
cheiro do amor se evaporou
pássaro preto opera encantamento
Autorizo-lhe a voz
o sertão me oferece a alma
agindo de parceria
com minha solidão
são nossos poderes mágicos
de heróis sem brilho,
espremidos entre espantos e receios
*
ORA! DIREIES
Pensei fazer poema pra lua,
desisti
é que ela anda muito nas espertezas:
a boca aberta, o coração ausente,
muito explorada pra responder perguntas,
vai desentulhando:
1 – o discurso dos devaneios
que lhe arrancou São Jorge;
2 – o encontro intensamente verdadeiro
dos dois, acontecido no meio de um eclipse;
3 – o sexo com o dragão
que a deixou coxa pro resto da eternidade;
4 – encontrou um Picasso vermelho-púrpura
no sexo inanimado
de um anjo macho
e explodiu na gargalhada;
ninguém lamentou o estorvo do tempo,
nem percebeu essa brincadeira da lua.
Certo, perdi o senso,
mas
Enfeitai-vos, dançai, ride,
pois só quem ama…
*
DIA DE ANIVERSÁRIO
Meus 54,
abençoa a lua,
como só se faz uma vez,
A palavra sem recomeço
acorda, eu verso e
em sonho reúno raízes mulher,
pra soltar o grito
da vida mal dividida,
vida guardada
no meu olhar caolho que
tem a medida do mundo
e da ambição.
As casas, quebrando as esquinas,
param na minha janela.
Que me espera por detrás dessa noite?
talvez um desassossego?
Esta terra traz voz rouca,
repare na canção do aboio:
são palavras desenroladas pelo tempo,
de um chão que desce lá de cima
e faz dessa vida,
essa mesma vida