Seis poemas de João Bosquo Cartola
João Bosquo Cartola, poeta, jornalista e licenciado em Letras/UFMT, mora e trabalha em Cuiabá. Morou em Curitiba, onde publicou o livro Abaixo-Assinado (1977). Em Cuiabá, novamente, lançou os livros Sinais Antigos (1981), Outros Poemas (1984), Sonho de Menino é Piraputanga no Anzol (2006) e Imitações de Soneto (2015). Participou das antologias Abertura (1976), Panorama da Atual Poesia Cuiabana (1986), A Nova Poesia de Mato Grosso (1986) e Primeira Antologia dos Poetas Livres nas Praças Cuiabanas (2005). Com Abdiel ‘Bidi’ Pinheiro Duarte editou o alternativo NAMARRA (1984/86) e coordenou o projeto POETAS VIVOS (1987/88), da Casa da Cultura de Cuiabá. Sua obra mais recente é Seleta cuiabana: cinquenta poemas que falam de Cuiabá (Carlini & Caniato, 2019).
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Café, Leite e Lembranças
Quando peço um café com leite,
Não peço apenas um café com leite,
Está incluso uma xícara de lembranças
A medida exata dessas lembranças
Ninguém sabe precisar, hoje ou amanhã
Nas manhãs que se repetem matinais
Café com leite é uma receita perfeita!
O preto café se mistura ao branco leite
E forma essa tonalidade brasileira…
Essa mistura, além do tom perfeito,
Tem aroma e sabor que gruda
Além da língua e saliva a fala…
Ao pedir uma xícara de lembranças
Peço um pouco de mim mesmo.
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Café do Ano Novo
Estou aqui. Bebi o café quente do ano novo,
lembrei-me de pessoas e dum livro de poemas lidos
quando queria ficar triste, mas alegre permaneci
olhando para fora da janela do próprio tempo
Contar o tempo quando se vê no espelho do banheiro,
ao fazer barba de pelos brancos, é obrigação diária
sem se exaltar, sem desespero, sem indignação vária
Estou aqui, neste mesmo recinto que me verá
quiçá, centenas de anos, procurando palavras
nesta inglória luta com a linguagem materna
entre o sentir e o papel em branco de poesia…
Este meu recinto, sinto, precisa de limpeza interna:
menos egoísmo, mais compaixão e decisão na busca
pra superar o Pantanal desta minha humanidade.
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Quando o Sol Grita Bom Dia
Quando o sol, ao amanhecer, grita: Bom dia
O dia amanhece em todas as partes da manhã
e começa a procura pelo café preto, leite bom,
pão com manteiga e conversa fiada tecelã…
O dia bom, não importa se tem sol ou chuva,
é pra viver a lavoura, o grão germinar na terra
e frutificar, com doces alegorias, nosso coração
que sonha pelas retinas arco-íris de longe serras
O dia, o meu dia, começa nesta velha Cuiabá
de traçado estranho, a me levar por entre becos
do Córrego da Prainha, Ribeirão, Cacimba…
Cuiabá tem muitos rios e dias bons pra meditar
Quando a vida começa é quando o sol dispara
do Oriente seus raios de luz e ela se faz mãe terna.
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Antigo Mar Chacororé
Nesta Baía de Chacororé, antigo mar,
havia – do tempo de ter – um peixe sabido
e fugia dos anzóis e tarrafas traçadas
Ele ensinava – que a vida é ensinar –
os lambaris e outros peixes menores
como se safar das armadilhas do destino
impostas pelo próprio rio Pantanal…
Esse peixe sabido sempre nadava
rio abaixo com as próprias nadadeiras
sem jamais sonhar rio acima ou asas
No trecho de ir e vir – nascer e morrer
em águas velhas ou renovadas águas –
o peixe sábio, filho, pai e avô de peixes,
não se deixa levar pela soberba do saber.
*
Bom Dia de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa diz: bom dia!
Em um poema de alta periculosidade
Sem medo de ser identificado
Como poeta português
Tudo que podemos somar
Dois e dois, remar rio abaixo
Descer às profundezas do Pantanal
Vem da herança lusitana…
Bom dia! Responde o leitor
De outro lado do continente
E sorridente olha para fora
Da órbita terrestre e vê o dia
Que se agiganta como um sol
E brilha infinito como uma estrela.
*
Minhas Ofertas São Postas de Peixe
Minhas ofertas estão postas na mesa
São palavras escritas sob o papel branco
Palavras que se colam a outras tantas
E não calam nas tintas da caneta imprecisa…
O poeta nunca se manifesta completo
Sempre pula um ou dois versos, sílabas
Até mesmo estrofes inteiras do poema
Quando se concretiza é final do dia-a-dia
No correr do dia há também o correr
Das correntes do rio que navegam no olhar
De um olhar de quem sonha sem piscar
Minhas ofertas, confesso, são postas
Pequenas postas de peixes fritos
Retiradas do imenso Pantanal que sonho.