Seis poemas de Lívia Lemos
Lívia Lemos nasceu em Niterói-RJ, em 1981. Formada em Letras (UERJ), fez mestrado em Ciência da Literatura (UFRJ) e em Filologia Hispânica (CSIC-Madrid). É professora de português e poeta em Barcelona, onde vive desde 2010.
***
Cidade desmedida
Por entre edifícios e solares
ia a cidade desvestida de urbe
correndo por avenidas intermináveis
e movendo a terra adiante.
Como fazem os barcos que se desatam do porto
e saem em busca do mar
a cidade se desprende das ruas
porque ela precisa ir.
Rompendo fronteiras: a amplidão
A cidade com os pés na desnudez do caminho…
semáforos luminosos já não regulam seus passos.
Tudo estava claro: rotas, jardins, avenidas.
As vias por onde os veículos não passam mais
o vislumbre perdido de territórios
para o adeus do que um dia foi
a cidade agora:
linhas das mãos, traço da cicatriz.
De um espaço qualquer, infinito.
Infinito é qualquer espaço.
*
A cidade insone
A noite exige palavras,
De pé, diante da janela do apartamento
são cinco horas da manhã e não tenho sono.
Fecho os olhos e vejo o corpo do poema
atenta às ruas do centro da cidade, busco palavras a passo lento.
Lá fora, o barulho da paisagem atenuante dos meus desejos
me faz enxergar a vida longe e com pouquíssimas árvores.
São cinco horas da manhã. Max dorme sonhando com tapetes de veludo. Sem saber que os carros seguem seu caminho,
ignoram os sinais e vão
seguros como se não houvesse fronteiras. Nem letras amontoadas dispostas em passaportes e jornais.
O poema se condensa. Quer se soltar depressa. Mas somente sob a imposição da noite. Depois do filme sobre bosques e desmedidas.
Depois do vinho e a marca da taça na mesinha de cabeceira. Ou depois do teto cair sobre nós, invadindo o quarto de estrelas
e de luz para o desconsolo de todas as possibilidades.
Eu já não saberia dizer se já amanheceu ou se o canto dos pássaros é apenas um zumbido dos meus anseios.
*
Poema em ímã
Viver e morrer na cidade
fadada à dinâmica dos fluidos.
Uma espécie de fenômeno físico
isso de tangenciar momentos sem história
onde tudo que entra ou sai dos corpos é falta de lembrança
ou inconstância
como nuances de azul.
Dentro da fluidez da água
dar espaço para o imutável e
resistir.
Talvez assim persista o alimento para o pulmão,
o ar necessário para penetrar as entranhas
e valer a vida pela vida
somente por ela, pelo elétrico impulso de vida e de força.
a atração vence a repulsa.
*
Notícias
Madalena foi-se embora sem perceber
a caminhar pelas esquinas do desconhecido
depois de contar histórias dos 30, de quando tecia
redes submarinas com os retalhos de lembranças
de óxido, sal e peixes.
Quando um dia se encontrou perante o ocaso
como se não tivesse conhecido o mundo e suas guerras
se deixou levar sem resistências.
traçando um chão de espumas no caminho das águas.
Pelo quarto do terceiro andar
o destino desta mulher entrou nas minhas carnes
o recebi como quem escuta um gemido
calado e vazio na cavidade dos sentidos.
Entrou pela janela, ao lado da cama
em que sonho, respiro e leio
as histórias, como a de Madalena
e outras notícias de partidas:
a avó e seu marido, o pai, a mãe e um tio também.
Não posso suportar o ar frio,
entrando pelas fendas da janela
quando começam a noite e suas trampas.
*
Poema para ler no circo
Os trapezistas
voando no céu sem chão
que mistérios querem desvelar?
O sonho dos trapezistas
encobre um salto no azul
Cordas pendulam velozes
levadas por braços, suor e músculo.
Suspensos
Oscilam livres
na superfície vazia,
prendendo-se ao nada
os trapezistas velozes.
Abraçados à leveza do acaso
meditado, medido
soltam e gravitam
Alternando entre base e nada
lançam e voltam
recuperam e perdem
suas asas e nuvens:
raízes aéreas
de aves que emigram
pela imponência do vento
rumo ao vazio pelo alimento
São pássaros os trapezistas.
*
Eu chorei no ônibus e depois vomitei
Talvez eu nunca poderei
realmente explicar
o que é você não entender, depois de chorar,
e entrar num ônibus sujo do centro da cidade
desatar a doer até vomitar.
Embora a hora, extinta seja, era uma manhã de maio
o céu girando.
a 10 milhões de graus.
O tempo pode ter tido início no céu da urca, santa teresa ou laranjeiras.
Era o Rio de Janeiro, eu sei,
ou um pé de serra que leve a caminhos ou a descaminhos que acabam (ou começam?)
naquele ônibus que me levava à casa.
Talvez eu nunca poderei explicar realmente
e estar
em queda livre em meio ao mapa estrelar
e ver
o sol girar como circulado
tortamente por um compasso.
e sentir
as minhas mãos entrelaçando suas costas,
tocando sinais perdidos em seu corpo.
Unidos e prolongados, os sinais
lembram os pontos do céu, o cruzeiro do sul,
e as constelações
dos signos vazios
completamente vazios
e vistos de doer
quando eu entrei naquele ônibus, chorei
e de tanto doer, vomitei.