Seis poemas de Lucas Cotosck Lara
Lucas Cotosck Lara existe. Desde 1996, existe. Belo-horizontino, latino-americano e latino-americanista. Formado em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e mestrando em Integração da América Latina pelo PROLAM-USP. E existe.
***
Consciência
Talvez seja impossível escapar da bênção sinuosa da consciência.
Pensar, seja para quem lê o resultado do regalo de Deus,
Ou de milhões de anos de combinações genéticas,
É uma bênção-fardo.
Ter consciência nos traz, de tanto que cada curva,
Corporal ou gráfica, salta aos olhos,
Algum discernimento fantástico da realidade.
Mas é um fardo.
Carregamos conosco o fardo de dar sentido aos troncos retorcidos, às maçãs de cera na sala,
Aos gramados em que nos sentamos e às pequenas pedras em que pisamos,
À poeira acumulada no canto do quarto, às garrafas baratas
E aos meandros dos olhos alheios.
Temos como fardo olhar como penitentes para cada ranhura da mão,
Cada papila digital como se dali fôssemos desvendar os mistérios da metafísica;
Olhar para os seres humanos como se fôssemos olhados de volta em igual medida.
E, desse extasiado observar,
Em que nada existe, e tudo, tudo existe
Em que os corvos voam, em que a lua fica estatelada nos olhos,
Em que os anéis de Saturno giram ao redor de nossas cabeças maravilhadas,
Daí surge a consciência.
Criamos consciência da gravura pendurada na parede,
Do gato no telhado, dos dedos úmidos esporádicos
E da própria sequência fractálica dos nossos pensamentos.
É até por isso que o ser-humano sempre tentou abdicá-la.
Fermentou e destilou o trigo a uva a cevada a cana os tubérculos
E pôs numa taça
E bebeu.
Assim, como ser-humano, é natural querer que o milagre da consciência
Hesite.
Há algo extremamente sedutor em ver oscilar os pensamentos
Como uma chama tremeluzente no quarto
Talvez isso leve a, mais que contemplar a arte,
Que façamos parte dela,
Enquanto os sonhos serpenteiam pelos meus braços
E eu, como um animal vivo,
Experimente. Atinja uma forma de percepção tão singela
Que ela deixe de ser um fardo.
Há algo em querer ser contemplado que é dar consciência do outro
Tornando-se, em si mesmo, um outro
Algo quase violento, suave, frio e elétrico
Em fazer parte,
Em despejar os fardos de outrora
E ser visto,
Porque é mais,
Muito mais que isso.
*
2038 ou sei lá
Caminhas por entre praças, pessoas e gente.
Caminhas e, antes de tudo, existes
Amassas o pão,
Vês as flores,
Movimentas as pálpebras,
Semeias a terra e as relações,
Tomas rumo de casa.
Observas, às vezes sem paciência, o desenrolar do mundo
Sentes frio no verão, calor no inverno,
Sentes o passar do tempo e das revoluções terrestres.
O planeta deveria ter anéis,
Ou fontes de água infinda e doses homeopáticas de afeto entre terceiros
Mas não possui.
Percebes, talvez com uma melancólica comichão,
Que o mundo é ausente de um bom número de coisas
E deveria deixar para trás outras tantas.
Mas caminhas.
As flores ainda estão ali,
Tuas pálpebras, como de praxe, ainda abrem e fecham
E tu te tornas capaz de receber
O mundo em suas montanhas e vales,
Os rios, em suas montantes e justastes,
Os filósofos, em seus tratados e delírios,
Os poetas, em suas odes e elegias.
Caminhas e vês as próprias artérias trabalhando
Incansavelmente.
Sabes, também, de suas múltiplas vidas,
Que nem só de pão vive o homem
Mais que observar, deves caminhar,
Amassar o pão com os olhos de um artista,
Ver as flores com a força do camponês cotidiano,
Semear com passos líricos tua família, teu bairro, teu partido,
E tomar rumo de casa.
Pois dança, dança!
Como se o dia que amanhece não fosse espreitado pelo miasma
E pela injusta distribuição
Contempla o milagre da vida com olhos despertos,
Mas caminha bem mais do que observas,
Trata as tuas feridas com o zelo que elas merecem,
Mas permite ferir.
Banha tua clavícula em tinta e paixões do espírito,
Dá-te brilho em livros e discussões acalentadas no bar da esquina,
Deixa-te amar em peito frágil
Derrete-te, atreve-te, come o mundo e os frutos do suor humano
Ingere a música, a pintura, a poesia,
Beija como se, de verdade, fosse a última
Admira o que tiveres que admirar-te
Explora-te como tiveres que explorar-te
Deleita-te com o que tiveres que deleitar-te
Semeia-te onde tiveres que semear-te
Ama-te como tiveres que amar-te
Indigna-te com o que tiveres que indignar-te,
Pisa cada passo do caminho como se fosse teu.
*
(sem título)
Soneto sem essência e sem propósito*
Soneto desalmado e macarrônico
Soneto descartado em um depósito
Pilar de penas num formato jônico
Soneto sem correta fechadura
Casinha esvaziada e derretida
Soneto sem motivo e sem censura
Sem sonho e sem pulmão. Contrapartida
Plástico. Servidão. Empunhadura
Ferveu no teclado. Mas não tem fala
Existe na mente. Sem prega vocal
Machu Picchu sem lhamas, sem
História. Água gaseificada
[Verso]
*Deve ser lido com ou sem a última linha
*
O Corvo
E, lendo empoeirados uns volumes,
Assusto-me, pois quase adormecia,
Quando ouço um som advindo dos negrumes
E vejo, na janela que se abria,
Entrar e repousar num busto grego
Um corvo dos bons tempos ancestrais.
E, para distrair do meu apego
À musa que partiu, deixou-me em ais
Danei-me a conversar no quarto estreito
Mas só me recebia um “nunca mais!”
E eu mais enlouquecia. Enfim, sem jeito
Gritei: “Retorne às trevas infernais!
Parti! Tirai o bico de meu peito!”
Mas ele repetiu-me: “Nunca mais!”
*
Despertar
Bom dia à vida, aos cânticos e às danças,
Bom dia aos infiéis da poesia,
Bom dia a quem perdeu as esperanças,
Bom dia aos servos da filosofia,
Bom dia aos que retornam dos sarcófagos,
Bom dia aos imortais e aos desesperos,
Bom dia aos segregados bibliófagos
E aos cálculos de louco e de exagero.
Bom dia à vista, às ânsias por conceito,
À solidão, aos sons e à teoria
Bom dia, pois levanto de meu leito
E acordo de uma morte que esvaía…
A todas essas vidas do meu peito
Bom dia, nada menos que bom dia.
*
Serpentes
Lanço meus braços,
Esguio-me pela tua cintura,
Ofídico envolto,
Enrosco,
Aproximo-me torto,
Sem nada mais certo.
Lanças-te o rosto,
E me sinto-me como mil braços me envolvessem,
Como rodasse,
Como ambulasse,
Como perdesse,
Isto nem mais é tango, ofiúro.
* Este poema é parte de um poema em 5 partes sobre equinodermos. Talvez seja útil ou interessante