Seis poemas de Lyanna Alisse
Lyanna Alisse é o pseudônimo da Liana, artista arteira nascida numa porto alegre, formada em teatro pela escola popular da terreira da tribo, atuadora. Bailarina da corpa torta, desentorta, re-entorta. Mulher transgênero, bissexual. meio-humana, meio-animal. Na dúvida, gira à esquerda, mas às vezes não tem lado ou posição que a acolha. Escreveu 2 fanzines, está concluindo um livro coletivo. Diária de uma quimera é seu primeiro livro-poesia. Uma amadora, no bom sentido da palavra.
***
Foda-se o sagrado feminino
Foda-se o sagrado masculino
Eu nasci pra ser
profana.
*
[sem título – 11/ de agosto/2018]
Quero o calor do verão dentro do meu
corpo
pra me aquecer do inverno lá fora
Quero um beijo
um desejo
um sentimento torto e mútuo
Viver no momento agora
Despir de mim o medo
a dor
o inseguro
Encontrar em outras mãos as
minhas mãos
em outras carícias
meus carinhos
Desejo desejar com força
com calor ardente de incêndio
que acabe com a minha frieza entorpecida
dessa solidão gelada de inverno.
– Uma flor brota, sem sol,
na casca da minha pele ressecada
lágrimas.
(22h51)
*
[11/03/2017 – Florianópolis] ( http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2017/03/em-florianopolis-moradores-protestam-contra-morte-de-transexual.html )
mataram a Jenni ontem
mais uma trans assassinada
como a Mirela, a Michelly, a Dandara, , , , , ,
somos a minoria em vida
e a maioria em morte
em recortes de jornal
em linxamentos
mais um delegado de merda desrespeita a nossa morte
mais um choro de tristeza e ódio noturno
ler as notícias me faz chorar para dentro
queria eu esmagar
a cabeça de mesquinhos discriminadores contra o chão
com minhas próprias mãos
com um bastão
ódio social
Sou uma louca desvairada!
serei eu a próxima?
quero estar preparada para morrer com
um canivete na mão e uma
orelha na boca
sangue Yago.
em vida a doçura
na morte não
queria ter um poder,
varrer o mundo as dores
encrustradas
dentro de seres sensíveis como nós
nos blindar
de ataques desses meninos mimados e escrotos que nos tratam como verme
brinquedo
devolver com ácido todos os olhares atravessados
todas as piadas de mal gosto
queria abraçar todas minhas irmãs mortas e dizer que acabou a dor aqui
mas não posso
quero me munir de forças
contratacar a sociedade inteira
com todo amor e ódio que cabem dentro de mim
transformar
transfigurar
uma
a
uma
as pessoas que cruzarem meus caminhos
e assassinar nossos assassinos.
com algumas pessoas
só consigo ver vermelho
vermelho circulando
em lágrimas.
*
[o final de um diário (caderno do meu sentir) pode ser tantas coisas – o que agente leva da vida é a vida que agente leva – última folha: 12/09/2019]
Quando eu morrer
não quero cruz, nem caixão, nem vela
não quero as flores de plástico eternas
nem uma urna de cinzas para enfeitar a janela
quando eu morrer
quero ser liberada do meu dever humana
quero miscigenar minha corpa de vísceras e plástico
com a mar, a terra, a ar e suas derivadas vivas
e que minh’alma flutue como nuvem para desaguar por aí
imagino que por mim hajam lágrimas mas também
festas
desejei desejar com força, e desejei
mais do que uma perda quero ser lembrada
como a presente perecível que fui
amo-vôs
liana
*
[10/07/2019]
Fayola
A paciência impaciente
um trovão que varre o palco
varre o silêncio
o momento
traz suspiros aos expectadores (im)passivos
desordena o fluxo dos relógios
quando me vê, vê
me olha
volto no tempo dentro de mim perco a noção de,
…
Fayola
quando me vê, vê
me olha
Se (des)entorta num fluxo de fogo, combustão
Transborda águas
Transborda máguas
Transborda amor
Se (des)entorta num fluxo de mar, maré
com seu silêncio preenche todo espaço
no som mudo de um impulso de ombros,
de olhos
toca profunda a alma da ser
minha amiga Fayola
quando olha,
vê.
Transborda.
*
[10/05/2019 – aula de cadeias musculares]
Meia luz, ritual.
Bacias com água morna
cidreira, óleos, plantas
cuidar dos pés da Bianca
ser cuidada pela Bianca
De pé num só pé nos seguramos
tremendo um pouco é verdade
separar-se e olhar pra si
aterrar
dar a bunda com o corpo vivo em seus 90°
pontá, pé,
esquerda, direita
aterrar
abrir as asas
livre
sentir o chão
Amor = admiração + respeito
ver nossa própria mãe interior
àguas que fluem ao expressar o cuidado
auto-amor que dissolve rochas
descrever a aula virou poesia
e poesia foi
o abraço da Bibs.