Seis poemas de Nic Cardeal
Nic Cardeal por ela mesma: “Na grafia da vida que se fez minha, não sei dizer ao certo a que fim eu vim. Só sei que vim. Nascida depois de um ovo partir-se ao meio, cheguei ao planeta em parceria. Talvez por medo de descer por aqui sozinha. Andei por lugares diversos, contei estrelas, juntei pedrinhas (e livros) pelos caminhos. Sou desajeitada. Calada. Quase esquisita. Minha voz tem som de silêncios. Enquanto não consigo dizer-me muito, faço de conta que me faço em palavras. Por isso escrevo: meu manual de sobrevivência. Meus escritos estão compilados na página do facebook: ‘Escrevo porque sou rascunho’.”
***
ABISMO
Eu caio por inteiro
nos braços longos e fundos
dos meus próprios abismos
recolho pedaços – cacos de mim –
resulto em mosaicos
remendos e costuras improvisadas
de uma ossada qu’inda sustenta a alma.
Sigo essa estrada
– não há modo mais ligeiro
de antecipar a chegada –
quem sabe eu seja apenas
mais um personagem
sendo escrito por tua palavra
no afã da alma
de dizer as margens
rasas rusgas
vesgas nesgas
rasgando a ferida
que sangra amor ardente na tua asa.
*
ALINHAVOS
Minha carne é fraca
– sou tecida
em curtos pavios –
o fogo arde
a água invade
a beira é rasa
o tempo é breve.
De que me serve
vento sem folha
terra sem ventre
escuro sem lume?
Quero um pouco mais de improviso
nesse riso guardado em estoques.
Busco a alma escondida na gaveta
onde guardo tantos medos desde sempre.
Desalinhei minhas simetrias
descosturei minhas mãos
e libertei meus receios do blecaute.
Hoje adormeço mais contente:
tenho um sonho iluminando meus escuros
e uma alma germinada pra semente.
*
CHARADA
Olhar nos olhos
e me debruçar
sobre a solidez
dessa insensatez
que mora nas distâncias
entre instantes
que falam na voz
no fio
no propósito
na saudade insana
que nunca liga os pontos
desses passos
que não pisam
o mesmo chão.
– Quanto mede
em mim
o infinito da tua presença?
*
TIPO SANGUÍNEO
Meu sangue é O positivo.
Meu coração pulsa A negativo.
Minha esperança continua vibrando
em AB(undantes) sentidos.
*
NA GARGANTA
Se me perguntares outra vez porque escrevo
gritarei contigo todo o meu poema reduzido:
Escrevo porque preciso
– tenho a alma entalada na garganta
e um coração refém dos meus ouvidos –
isso é tudo.
*
NOTÍCIAS
“E dá-me sonhos teus para eu brincar…” (*)
Criança faminta
pela calçada
criança ferida
sem mundo sem nada
criança na jaula
– pássaro acuado
sonhando casa –
criança morta
a caminho da escola
– sonho quebrado
em balas canalhas –
Eu, mínima
gesto a palavra indigesta
em angústia máxima.
(*) de texto de Fernando Pessoa