Seis poemas de Raquel Almeida
Raquel Almeida é poeta, escritora, arte-educadora e produtora cultural. Cofundadora do Coletivo literário Elo da Corrente, grupo que atua no bairro de Pirituba, desde 2007, no movimento de literatura periférica/negra, realizando um sarau semanal e mantendo uma biblioteca comunitária nessa comunidade. Cofundadora do Coletivo Cultural “Esperança Garcia”, que promove discussões sobre o papel da mulher negra e periférica na literatura e em outras vertentes artísticas. Iniciou seu trabalho artístico em 2005, cantando no grupo de rap Alerta ao Sistema. Atuou na rádio comunitária Urbanos FM em 2006/2007. Ministra oficinas de literatura em escolas, centros culturais, na Fundação Casa, entre outros espaços. É autora de Sagrado sopro (Elo da Corrente Edições, 2014, poemas) e, com Soninha Mazo, de Duas gerações sobrevivendo no gueto (Elo da Corrente Edições, 2008, contos, poemas e crônicas), além de ser coorganizadora (com Michel Yakini) da Antologia Sarau Elo da Corrente – prosa e poesia periférica (Elo da Corrente Edições, 2008). Participou ainda de diversas antologias, como Cadernos Negros 30; Negrafias I e II; Pelas periferias do Brasil II; Antologia Sarau Poesia na Brasa I, II, III e IV; Antologia Sarau dos Mesquiteiros – Pode pá que é nóis que tá, prosa e poesia (org. Rodrigo Ciriaco, 2012, vários autores); Antologia Sarau Perifatividade II, prosa e poesia (org. Coletivo Perifatividade, 2012, vários autores); Perifeminas mulheres no hip hop nossa história I, prosa, poesia e relatos (org. Lunna Rabetti, 2013, várias autoras); Pretextos de mulheres negras (org. Elizandra Sousa e Carmem Faustino, outubro 2014, várias autoras), entre outras. Blogs: <www.elo-da-corrente.blogspot.com> e <www.rakaalmeida.blogspot.com>.
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Agoniza
Corta essa sua carne dura e sangre
Se for o único jeito de descobrir suas estradas
Ferida aberta
Corta
Corta essa
Falsa promessa
Essa falsa fortaleza
Corta essas certezas
Deixa jorrar esse sangue
Nesse peito aberto
Enfia no oco seu ego
Faze o presente ser eterno
Cava suas memórias
E reviva.
*
Da terra que renasço
Solo que me fez
Me refaça!
Como a mãe preta que amacia a argila
Remolde!
Na moldagem
Revista meu coração com paredes de aço
Pra que nenhum abraço me cegue
Os retoques
Que sejam nas águas sagradas
Me banha, me rega,
Me rege
Terra firme que me regenera
Transforma minha fúria em fuligem
Enterra por aí minhas sentenças
Solo
Não me isola na mais árdua trilha
E blinda, blinda todinha a minha vida.
*
Sou
Tenho certeza de uma coisa
Sou vento e vento é livre
Sou água e água corre
Sou terra e terra é fértil
Sou intensamente regida
Pela vida
Meu amor me agride
Preenche e sufoca
Sou amor sou amar
D’mar
Sou fúria e calmaria
Sou ninho
E nos meus caminhos
Me perco.
*
Pesada
Eu não sou uma mulher leve
Minhas asas pesam liberdade
Meus pés pesam diversos caminhos
Não sou uma mulher leve
A vida me pesa o suficiente pra viver dilemas, todos pesados
A vida nunca foi uma pluma
Sempre me pesou
Não sou uma mulher, amena
Serena
Pequena diante da grandeza dos problemas
Sou uma mulher pesada
Carrego minhas marcas, minha linhagem, bagagem, conflitos, problemas
E eles pesam sobre meus ombros
eles cortam minhas asas
E o peso também me sustenta
Seria metade, nunca completa
Sem elevar meus sonhos pesados sobre o mundo
Eu sou uma mulher pesada
E não me enfeito de mansa tendo garras de leoa
Minha leveza existente tem peso
Minha lágrima tem peso
Meu suor
Meu gozo
Meu suspiro
Meu delinear nos caminhos
pesa
eu me equilibro no peso de um salto
E sambo no enredo da vida.
*
Encasulando pra criar asas
Cirandeira difícil
Quis ser rainha na terra de muitas coroas
Quis ser leoa em terra de muitos rugidos
Passo
Rastro
Corro e não alcanço
Não alcanço esse ranço
De gostinho doce puro fel quando engolido
Não alcanço a soberania ditada
Fujo de um padrão pra me prender em outro
E outro
Outrora vendido como solução
E entre soluços e solidão
Eu me encasulo
Entre tapinha nas costas e beijinho no rosto
Eu me encasulo
Entre o vale o que tem
Camuflado em falsas lutas
Me encasulo
E na minha metamorfose
prometo não mais me boicotar
Estou certa que vou renascer
Vou renascer
E terei asas.
*
Estou jorrando sangue
arrastada pelas ruas
Exposta em praça publica
Massacrada por um rolo que comprime, oprime
Arranca a ultima gota de sangue-suor dito igual perante deus
Estou jorrando sangue
na porta da minha casa
Desguarnecida
com uma bala cravada na nuca
Desfalecida
levando porrada, largada no asfalto
Jorro sangue num mundo que diz que preciso sorrir
sendo torturada coletivamente
Jorro sangue a cada onze segundos
Me afogo nesse rio de traumas
Me sufoco em meio a papéis que não dão suporte em nada
Leis do cão que não funcionam para minha pele
Para o meu cep
Jorro sangue quando me fazem acreditar
Que viver ensanguentada é natural de gente minha
E mesmo cerrando os punhos
criando escapes
acredito que minha voz ainda não ecoa
Estou no meu rio de sangue
planejando revides sem sucessos
Todo meu sangue vira comércio
e as feridas continuam expostas
Estou aqui, jorrando esse sangue
dito igual perante deus
Entoando um BASTA
se agrupando com vozes que se assemelham à minha
Empurrando os dias
e abrigando o desespero que bate à minha porta
Estou jorrando sangue
lutando para que um dia venha estancar.
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