Seis poemas de Thiago E
Thiago E nasceu em Teresina, é poeta de testes e músico. Publicou Cabeça de sol em cima do trem (2013), livro e disco. Integrou a banda Validuaté, com a qual lançou Alegria girar (2009), DVD Validuaté ao vivo (2015), entre outros. Participou de vários trabalhos coletivos, como o LP Garganta (2016), org. por Sergio Cohn; É agora como nunca (2017), org. por Adriana Calcanhotto; Palavbras andantes, org. por Érica Casado e Sergio Cohn (2018); Sobre poesia, ainda (2018), org. por Tarso de Melo; Uma pausa na luta (2020), org. por Manoel Ricardo de Lima.
Os quatro primeiros poemas são do seu novo livro, ainda não publicado – “língua” e “gagueira” compõem Cabeça de sol em cima do trem.
***
compasso |
talvez | por amor à música
teria a gata | uma pauta
:
compor | só os sons necessários
ser a duração da pausa |
*
vocabulário sensorial
por que palavra nenhuma
há no contato felino?
ele ensina – em suma –
a linguagem são fios finos
linhas dizem por textura
quando encosta comunica
outra fala, a frase física:
na língua – pano incompleto –
um gato inspira a costura
desfiando o alfabeto
*
os gatos quando os dias passam
[ segunda ]
a gata
só ama com as unhas:
o afeto destrói
alguns móveis da sala
[ terça ]
coração selvagem:
chega
pisa
pesa
azunha –
felinos ferem para confiar
[ quarta ]
haikai às 20h
noite quente:
um gato deitado
no teto do carro
[ quinta ]
poemas de pelos:
a leitura
dura
um pulo –
gatos ou haikais?
[ sexta ]
às 7h15
sofá no monturo:
de bruços
a gata da rua
faz sala pro mundo
(às 14h)
das patas
das gatas
surgem agulhas:
máquina de descostura
[ sábado ]
tanka às 17h30
a gata boceja
estirada
no meu colo:
um rabo-de-tesoura
corta o céu da tarde
[ domingo ]
shhh… felinos dormem
setenta por cento
do tempo:
realidade e sonho
o gato não separa
*
gata preta
gata preta, gata preta
talismã de aura mística
sorte minha no caminho
sua presença pelas plantas
colhendo-as com a boca fina
sem contas, sem voz, sem ânsias
semeou tempo em meus nervos
e dei fé que certos medos
ao triscarmos neles queimam:
a angústia tem baba grossa
deságua no rio da fala –
de primeiro, era a tristeza
minha forma de ter calma
gata preta, gata preta
ao grosar-me suas bochechas
muda mil limites íntimos
*
língua
a língua é um triste molusco, chora um pranto negro e escuro (molusco triste é essa língua) lembra e lambe sua dor fina – dentro da boca, tal molusco chora a falta do seu casco: quer de volta o tempo justo, voltar pra lenda do passado – lenda velha, antes da boca, tinha concha e casa, escudo e força, mas, num mistério da matéria, perdeu a parte mais eterna – se fez só língua e se desintegra – a língua é um triste molusco já sem esperança, no escuro, de reaver seu casco, ter futuro, resigna-se com riso de chumbo – como lhe resta ser mesmo língua, linguagem motor – sempre e ainda – é na boca pá e palavra (fala igual como quem cava) cava com o corpo um liso assoalho – chão de carnes gêmeas, molhado, buscando na cabeça o antigo casco: roupa e casa, escudo e agasalho – a língua é um triste molusco, já não sabe se é carne ou um soluço – sem concha, se reinventa no escuro – sem cara, existe feito um espectro, espasmo, movimento, um obgesto
*
gagueira
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(Fotografia de José Ailson Nascimento – originalmente colorida)