Seis poemas e uma peça teatral de Armando Liguori Junior
Armando Liguori Junior nasceu em 12 de dezembro de 1964, em São Paulo. Formado em jornalismo pela PUC-SP e artes cênicas pelo Teatro-Escola Célia Helena. Trabalha como redator, roteirista, ator em eventos e vídeos corporativos. Tem três livros publicados; um de poemas (2009), Territórios pela Editora Scortecci; outro de dramaturgia, Textos curtos para teatro e cinema (2017) pela Editora Giostri; e o mais recente A poesia está em tudo (2020) pela Editora Patuá (https://www.editorapatua.com.br/produto/120057/a-poesia-esta-em-tudo-de-armando-liguori-junior). Escreveu, adaptou e atuou em diversos espetáculos da Cia Os Tios (da qual é um dos fundadores), entre eles, Dentro do bosque, do filme Rashomon de Kurosawa, e Matteo perdeu o emprego, do livro de Gonçalo M. Tavares. Atualmente mantém um canal no YouTube (com o nome Armando Liguori), dedicado à leitura poética de diversos autores brasileiros e estrangeiros. Neste ano de 2020 completará 1000 poemas lidos.
***
- Do livro Territórios (Scortecci, 2009)
TERRITÓRIOS (TRECHOS)
Território é continente
é país
é cidade
Território
é bairro
é rua
é casa
Território é sapato
…
Casa é território secreto
é coisa
móveis
é imóvel
é gente
é bicho
é lar.
Às vezes não.
Pela porta se entra
e também se sai
Pela janela se olha
e também se é visto
Casa tem cômodos
pequenos territórios
para que os moradores da casa
se protejam uns dos outros
Casa tem cômodos
e incômodos
…
O relógio é o território do tempo
o tempo é o território da história
a história é o território do homem
O relógio repete o tempo
o tempo repete a história
a história repete o homem
O homem se repete
…
Pé pode ser território de pisar
mas também é de esmagar
Mão pode ser território de pegar
mas também é de soltar
de apertar
de carinho
e de tapa
Braço é território de abraçar
mas também pode ser de prender
Cabeça é território de pensar
de guardar
de lembrar
mas na maioria das vezes
é território de esquecer
Coração é território do todo
E, muitas vezes, território deserto
…
Cachorro faz xixi para marcar território
quem não tem território
cão sem dono
*
TUDO
tudo o que toco
tudo o que quero
tudo o que foco
vira oco
tudo o que sei
tudo o que sou
tudo o que faço
vira avesso
tudo o que tomo
tudo o que bebo
tudo o que engulo
vira seco
tudo o que sonho
tudo o que falo
tudo o que somos
vira nada
tudo oco.
tudo avesso.
tudo seco.
tudo nada.
*
FIM
Todo mundo é assim:
começa quando nasce
e pensa não ter fim.
*
- Do livro A poesia está em tudo (Patuá, 2020)
Solidão
Solidão é silêncio
De estimação
É tecer casulo
Com seda própria
É manter a porta
Aberta para dentro
E, mesmo assim,
Não estar
Pra ninguém
Solidão
Deixa a gente
Preguiçosa
De gente
*
Nome de montar
Não sabia…
Mas quando nasci
Ganhei um nome
De montar e desmontar
Armando
Ar
Arma
Armo
Armado
Ama
Amando
Amado
Amo
Ara
Arando
Aro
Ardo
Ando
Mando
Do
Só descobri hoje.
Desembrulhei
E brinquei
*
Vem brincar
Escrever é parque de diversão.
Deixa a tua criança correr.
Deixa a tua criança brincar.
Põe uma palavra no papel (qualquer palavra)
Depois põe outra
E outra…
Muda de posição.
Joga pra cima e deixa cair pra ver se quebra.
Se quebrar pode ser poema.
Se não, é prosa, com certeza.
Gira a palavra na roda-gigante da tua imaginação
(A vida é um sobe e desce, por que escrever não seria?).
Desliga os pontos, solta as vírgulas, abre outros parágrafos.
DESRESPEITA AS GRAMÁTICAS.
Fala que é licença poética, que assim pode.
Tudo o que é livre
Cabe num livro
*
- Do livro Textos curtos para teatro e cinema (Giostri, 2017)
DO ARCO DA VELHA
Duas senhoras com idades avançadas pegam um táxi no aeroporto, trazem malas pesadas. O motorista coloca a bagagem no porta-malas. As senhoras ficam apenas com a bagagem de mão. Senhora 1 acomoda-se na frente e Senhora 2 atrás.
Motorista – Pra onde senhoras?
Senhora 1 – Granja Julieta.
Motorista – Pois não.
Carro sai do aeroporto. Tempo. Motorista tenta uma conversa.
Motorista – As senhoras estão vindo de onde?
Senhora 2 – Ahhh… do Nordeste.
Motorista – Deve estar muito calor lá.
Senhora 1 – Muito.
Motorista – Aqui, ao contrário, tem feito frio e chovido muito. A cidade está um caos.
Senhora 2 – São Paulo combina com este clima mais pesado.
Senhora 1 – É. Combina.
Tempo. Carro entra numa rua um pouco mais tranqüila. Senhora 2 que está atrás pega um revólver da sua bolsa e encosta no motorista. Senhora 1 também está armada. A arma está sob a blusa para evitar visibilidade. Nesse momento elas adquirem uma vitalidade antes inexistente.
Senhora 2 – Isto é um assalto. É só ficar quieto e seguir nossas instruções que nada vai te acontecer.
Motorista – Pode levar todo o meu dinheiro está aqui nesta bolsa.
Senhora 1 – Não se mexa. Continue dirigindo. Nós não estamos pra brincadeira.
Senhora 2 – Vamos mudar o rumo: represa de Guarapiranga.
Motorista – Por favor, levem o dinheiro e me deixem em paz.
Senhora 1 – A gente não quer só o dinheiro. A gente quer seu carro.
Motorista – Por favor, o carro não. Eu estou pagando as últimas prestações. É o meu ganha-pão. Eu tenho família, três filhos. Minha esposa está internada. Eu preciso muito desse carro para trabalhar e sustentar minha família.
Senhora 2 – Se for pra contar história triste meu filho, eu tenho pelo menos uns trinta anos a mais. Você ia cansar de escutar história triste.
Senhora 1 – Nós já estamos numa idade que pouca coisa nos impressiona ou comove. A gente tá pouco se lixando pra você e para sua família. E fique feliz se a gente de deixar vivo.
Motorista – Então leva o carro e me deixa aqui.
Senhora 2 – Pra quê? Pra você chamar a polícia? Não senhor. Vamos indo e chega de papo, que eu não tô com saco.
Senhora 1 – E tem mais: nós não gostamos de dirigir, ainda mais nessa loucura que é a cidade de São Paulo. Agora vê se dirige e fica quieto que eu não estou num bom dia hoje e não custa nada te meter uma bala.
Tempo. Tensão.
Senhora 1 (se dirigindo a senhora 2) – Sabe o que me deixa mais puta da vida? É este povo achar que a gente, por que é velhinha, é coitadinha, é frágil, é amorosa. Que todas as velhinhas são avós carinhosas. O caralho! A gente é gente. A gente tem que comer. Tem que viver. É muito fácil colocar a gente em asilos. A sociedade se livra de mais estes incômodos.
Senhora 2 – É meu filho, ganhar dinheiro nessa idade não é tão fácil não. E viver de aposentadoria não dá. A gente tem que fazer esses bicos pra, pelo menos, ter uma velhice digna.
Senhora 1 – Em resumo já que tá todo mundo se lixando para os velhinhos, então a gente também tá se lixando para os novinhos.
Motorista – Mas as senhoras não têm famílias? Filhos?
Senhora 1 – Você chamaria teus filhos de família se eles te colocassem num asilo e nunca mais fossem te visitar?
Motorista – Eu nunca faria isso para minha mãe.
Senhora 2 – Faria, faria sim. Todo filho faz. É só os velhos começarem dar um pouco de trabalho, que a paciência dos filhos se esgota. Ninguém agüenta conviver com a degradação física ou com a esclerose. Um velho em casa só atrapalha a vida dos filhos.
Senhora 1 (triste como para sí mesma) – Um velho em casa só atrapalha a vida dos filhos.
Senhora 2 – Não vai por aqui não, pega aquela paralela que é mais livre e vazia.
Motorista – Por favor, não levem o meu carro. Eu faço tudo o que as senhoras quiserem. Dou meu dinheiro, relógio, tudo.
Senhora 1 – A gente não quer esmola. A gente quer dignidade.
Motorista – Mas o que as senhoras vão fazer com o carro. É difícil passar pra frente.
Senhora 2 – Filhinho, este teu carro já tá encomendado. A gente vai chegar lá e levar a grana. Tá pensando que a gente nasceu ontem?
Senhora 1 – Mas é um otário mesmo.
Tempo. Tensão. O motorista está quase chorando.
Motorista – Eu é que não quero chegar na minha velhice tão amargo e tão revoltado com o mundo. Deus me livre.
Senhora 2 – Você vai dar sorte se chegar até a velhice. Por que se você continuar com este papo-furado eu te estouro os miolos agora mesmo.
Motorista – A senhora já matou alguém?
Senhora 2 – Matei 3. Estou na minha cota. Dei luz a 4 e posso matar 4. Essa devia ser a lei de todas as mulheres: a cada ser que a gente põem no mundo tem direito de mandar um pro inferno.
Senhora 1 – Eu só matei 1. Ainda tenho 2 de crédito. (Ri)
Motorista – Meu Deus do Céu. Eu não acredito que isso esteja acontecendo comigo.
Senhora 2 – Agora entra naquela quebrada lá, meu filho.
Tempo. Tensão. Chegam a um lugar deserto.
Senhora 1 – Pronto. Chegamos. Pode parar.
Senhora 1 desce e abre a porta do motorista.
Senhora 2 – Sai. E não tenta dar uma de esperto.
Senhora 1 – Agora chega pra lá e tira a roupa
Motorista – Mas pra que? Vocês já ficaram com o carro.
Senhora 2 – Só pra gente se divertir um pouco.
Senhora 1 – Tira essa merda dessa roupa logo caralho.
Motorista tira a roupa.
Senhora 2 – Hummmm. É não é de se jogar fora.
Senhora 1 – Não faz o meu tipo. Pega as algemas.
Motorista – Algemas
Senhora 1 – É. Faz de conta que a gente vai fazer um sexo violento. Agora abraça aquela árvore.
Senhora 2 coloca algemas e o motorista nú fica abraçado à arvore. No final dá um tapa na bunda do motorista.
Senhora 1 (para senhora 2) – Agora vambora. Pegar a nossa grana.
Senhora 2 – Vamos embora que eu estou morrendo de fome.
Senhora 1 sobe no carro e fica no lugar do motorista. Senhora 2 senta no lugar do passageiro. Fazem uma saudação de vitória e partem. O carro sai dando soquinhos, já que a senhora 1 não sabe dirigir muito bem.
Senhora 1 – Tchau filhinho e vê se cuida bem da sua mãe heim?