Seis poemas e uma prosa de Gil Costa
Gil Costa é escritor, assistente social e agente cultural. Natural de São Paulo-SP, atualmente reside em Itabirito-MG. Trabalha com jovens em cumprimento de medida socioeducativa e pessoas em situação de rua. Em 2018, lançou o romance social Colonus – heróis da revolução, pelo selo Tuopia. Em 2019, com Soldado sem bandeira, publicação independente, estreia em uma linguagem enxuta, que mescla poesia e prosa, busca dizer muito em poucas palavras,trazer à luz as histórias desupostosperdedores e tocar nas feridas de uma estrutura social que produz a desigualdade, cria vilões e estigmas.
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A vida toda ouviu que homem não chora
Como queria ser homem
Não chorou
A vida toda ouviu que era preciso engolir o choro
Como queria ser homem
Engoliu
A vida toda não
Apenas aquela pequena fração
Que ele chamava de vida toda
E era uma vida toda difícil
Uma vida toda sem o pai
Que era homem
Engolia o choro
Mas não assumiu o filho
Uma vida toda vendo o tio
Que era homem
E não chorava
Espancando sua tia
Pensou direito e não teve dúvidas
Passou a chorar
Engolir o choro nunca mais.
*
Lido com órfãos sentimentais
Órfãos de tudo o que é importante
Adotados pelo tráfico
Alvejados por balas de incoerência e estigma
Encaro o choro de mães impotentes
Envelhecidas uns quinze anos
Esgotadas
Cansadas de invasões policiais no meio da noite
De encontrar drogas que não sabem o nome
De não reconhecer mais os filhos
Que ontem falavam em comprar casas
Para tirá-las daquele submundo
Agredido de todas as formas pela pátria
Só querem que os filhos trabalhem
Ou estudem
Ou se internem
Ou que vão morar com a tia da capital
Que tem sempre um subemprego como salvação
Melhor que o contrato com a biqueira
E vendo isso de fora
Eu que também tenho problemas familiares
Que não consigo resolver
Ofereço soluções lógicas e lineares
Que até funcionariam não fossem aplicadas
No acidentado terreno da vida real
Ofereço o enquadramento
Numa sociedade que os despreza
Enalteço o trabalho
Como uma propaganda nazista
Ofereço a terra prometida
A jovens judeus a caminho de Auschwitz.
*
As versões oficiais da polícia mentem. Falam em trocas de tiros quando há execuções. Sempre escapam os suspeitos a quem se atribuem balas perdidas que encontram inocentes. Nas versões oficiais da polícia não há inocentes nas favelas e periferias, apenas bandidos que atiraram primeiro, porque a polícia nas versões oficiais apenas reage à ação dos criminosos. As versões oficiais não contam histórias como a de Rômulo, mototaxista, pai de uma criança de seis meses, baleado pela polícia que desconfiou da velocidade de sua moto. As versões oficiais não contam que um policial disse à mãe de Miguel para que comprasse um caixão pequeno e pouco tempo depois o menino de doze anos apareceu morto. As versões oficiais não contam que Paulinho de onze anos pediu à mãe para andar de bicicleta e foi morto em ação policial. Todos inocentes. Está cada vez mais difícil acreditar na versão oficial da polícia.
*
Leia mais, soldado
Mas saia um pouco das normas
Leia estatutos
E comece pelo ECA
Leia mais, soldado
Mas saia das normas
Leia mais estatutos
Agora os direitos humanos
Leia mais, soldado
Mas fuja das normas
Leia livros
E comece por poesia
Leia mais, soldado
Ignore as normas
Porque quem lê pouco
Dispara muito.
*
A cabeça baixa
Reflete a autoestima lá no fundo
Nunca olham nos olhos
Se curvam tanto
Que parecem querer mergulhar
Acho que é isso, imersos o tempo todo
Como o Baiacu, estão cheios de tudo
E às vezes matam
Mas não são peixes
São meninos
E têm que ir à superfície respirar
Atrás da pose de tubarão
Há um peixinho acuado
Sem cardume
Desviando do lixo tóxico que destrói o oceano
Tem saudade de quando o mar era calmo
Agora ouve todo dia que o oceano só piora
Ensinam que bom é ser peixe de aquário
Ele fica perdido
Só peixinhos coloridos e dourados são escolhidos
Aprende rápido que sua cor atrai predadores
E que há redes de sobra para peixinhos escuros.
*
A eleição vai passar
E os socos de esquerda e direita
Na cara do povo voltarão a ser dados
Com a mesma violência de sempre
E mesmo eu achando o Brasil destro
Já que a direita sempre bateu mais forte
Ainda sinto a dor dos jabs da esquerda
Na urna me sinto um lutador medíocre
Sei que apanharei de qualquer forma
Torço que vença quem tem a mão mais leve
Para que o soco deixe zonzo
Mas não me nocauteie
A esperança no cinturão é pouca
Estou no vestiário esperando o anúncio
Que me levará à lona de qualquer jeito.
*
Há inocentes nas favelas e periferias
Eles estão no meio das balas
Mas não são culpados
Não coloque todos no mesmo saco
Aliás, em saco nenhum
Periferias têm trauma de saco
Principalmente saco preto
De pobre caído
E de operações policiais
Porque sempre morre inocente
Sempre morre parente de inocente
Sempre morre conhecido de inocente
Que desafiou as leis de um Estado
Que não cumpre as leis que cria
Há muitos culpados pelos disparos
Há muitos que lucram com gatilhos apertados
Essa guerra é inútil e mata soldados
Do Estado e do crime
Que às vezes são os mesmos
Mas mata muito inocente
E é bom que se diga
Há inocentes nas favelas e periferias.