Seleção diastólica de Margarita Bustos – Revista Mal de Ojo
Ser América Latina é acreditar que, para além de simples territórios e dos idiomas falados, há um povo que conta as suas histórias e resiste dia após dia às instabilidades econômicas/políticas e severos problemas sociais. E nessa resistência, engendra-se uma diversidade literária, que, assim como o povo, luta, se recria, ensina e nos encanta. Do político ao simples versar do cotidiano, aqui se unem e se cruzam as revistas Mal de Ojo e Ruído Manifesto para dar voz ao povo de uma América Latina que ainda precisa gritar por liberdade e fazer de suas paixões trincheira, repercutindo aos quatro cantos do mundo, por intermédio de textos singulares, a beleza e a contundência de seus desejos. Por aqui passarão escritos de poetas da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia e Peru.
Uma curadoria de Hérnan Contreras R. e tradução de Michelle Santos.
***
Seleção diastólica de Margarita Bustos
Poema 1
Abrindo a terra
Como o ventre de um animal pré-histórico
Correu sangue neste lugar
Bem sei de quem é
Grito sob toda luz e todo espaço.
Minha língua áspera baba
Não posso falar
Vida maligna, maligna
Vou repetir o verso
Até um cadeado encontrar
Apago e volto a apagar
O sangue escorre entre o subjuntivo e o futuro
Caem gotas sobre o teto
A chuva cai com som de ferrugem
Perdi um dedo da mão
Cavando a sepultura
Percorro um trecho da vida
pegada entre dúvida e verme
os cachorros descansam sob
a luz da lua sob a luz
de uma ampulheta amarelada
uma luz com muitas sombras
uma luz com muitas sombras
Poema 1
Abriendo la tierra
como el vientre de un animal prehistórico
ha corrido sangre en este lugar
o sé bien de quién es
grito bajo toda luz y todo espacio.
Se me cae la baba la lengua traposa
no me deja hablar
maligna maligna vida
he de repetir el verso
hasta dar con el candado
borro y vuelvo a borrar
se escurre sangre entre el subjuntivo
y el futuro
caen gotas sobre el techo
la lluvia tiene un sonido de herrumbre
he perdido un dedo de la mano
escarbando la fosa la casa final
recorro un tramo de vida una
huella entre la duda y el gusano
los perros descansan bajo
la luz de la luna bajo la luz
de una ampolleta amarillenta
una luz con demasiadas sombras
Una luz con demasiadas sombras
*
Poema 12
A cidade está cheia de pássaros escuros
Não tem como espantá-los
Alimentos carregados em seus bicos caem sobre nossos corpos
Como uma verdadeira chuva de granizo
Olhos, dentes e narizes voam
No meio de gritos e prantos
desarmônicos
mais ainda
os pássaros escuros assaltam
dispensas particulares
supermercados e granjas
deixando para trás vazio
e sangue
Eu – bruta entre as brutas-
Vou recolhendo pedaços
Recompondo rostos
De noite, de dia
As mãos machucadas
A pele cheirando mal
Com apenas um pedaço
De pão
Com apenas uma gota de agua
enceguecida e poeta
o objetivo sempre
é o mesmo:
a palavra sobre a mesa
a palavra sobre a folha
a palavra sobre o céu
a palavra no coração em chamas
Poema 12
La ciudad está llena de pájaros oscuros
no hay manera de espantarlos
sus picoteos caen sobre nuestros cuerpos
como una verdadera granizada
Vuelan ojos dientes y narices
en medio de gritos y llantos
destemplados
no sólo eso
los oscuros pájaros asaltan
alacenas particulares
supermercados y gallineros
dejando tras de sí vacío
y sangre
Yo- bruta entre las brutas-
voy recogiendo pedazos
recomponiendo rostros
de noche de día
las manos llagadas
la piel maloliente
con apenas un mendrugo
de pan
con sólo una gota de agua
enceguecida y poeta
el objetivo siempre
es el mismo:
la palabra sobre el pupitre
la palabra sobre la hoja
la palabra sobre el cielo
la palabra en el encandecido
corazón.
*
Poema 14
Bruta bruta
Tu depositou tua força
Em um só golpe
Repetido no tempo
Uma cadencia
ancestral
e monótona
envolve o ar
se tapa os ouvidos
de mais alguém
como se uma cigarra
constante os torturasse
é que sou surda
é que sou cega
é que luto
na noite escura
é que estou só
é que a paixão está aqui
mas está errada –burra que sou-
em abrir a porta
somente
com uma vozinha
um pequeno sopro de voz
não tem porta
não tem cadeado que abra
prefiro ficar dormindo
sobre o poema.
Poema 14
Bruta bruta
has tirado tu fuerza
de un solo golpe
repetido en el tiempo
Una cadencia
ancestral
y monótona
envuelve el aire
más de alguien
se tapa los oídos
como si una chicharra
constante los torturase
es que soy sorda
es que soy ciega
es que doy palos
en la negra noche
es que estoy sola
es que la pasión está aquí
pero está errada
Insisto – estúpida de mí-
en abrir la puerta
con sólo
un dejo de voz
un pequeño soplo de voz
No hay puerta
no hay candado que abra
opto por quedarme dormida
sobre el poema.
*
Poema 15
Esta Gabriela me entenderia
Se me visse partida ao meio
Com as mãos atadas
E a testa marcada
Me entenderia se subisse ao último andar
Da minha consciência e me empurrasse
Janela abaixo provocando uma parada
Entre mortos que me marcam
Me entenderia esta Mistral se colocasse
Uma palavra minha na sepultura de sua sepultura
Quase profano
Quase sexualizando
Me entenderia o tremor de suor
Isso que vai empurrando no saco
E ao abri-lo contém um pouco de tudo
Ou um pouco de nada
Esta mulher me entenderia se eu falasse da menina montada na cena
A golpes de árvores no chão
Enquanto acaricio o osso
A pele de terra alucinada
E a fé irrefutável em um deus
Que levo sistematicamente
Ao quarto dos brinquedos esquecidos
Me entenderia, tenho certeza
que me entenderia.
Poema 15
Me entendería esta Gabriela
si me viera medio partida en dos
con las manos ajadas
y la frente surcada
Me entendería si me subiera al último piso
de mi conciencia y me lanzara
ventana a bajo provocando estupor
entre esos muertos que me signan
Me entendería esta Mistral si colocara
una palabra mía en la tumba de su tumba
casi profanándola
casi sexuándola
Me entendería el temblor de la sudoración
esa fuera bruta de ir dando
empellones hasta el saco
hasta abrir el saco
que contiene un poco de todo
o un poco de nada
Me entendería esta mujer si le hablara
de la niña montada en el escenario
a golpe de árboles caídos
mientras le acaricio el hueso
la piel de tierra alucinada
y esa fe irrefutable en un dios
que llevo sistemáticamente
al cuarto de los juguetes olvidados
Me entendería, estoy segura
que entendería.
—————————-
A poeta, atriz e membro do grupo Matra, a chilena Maha Vial (Valdivia, 1955-2020), é comprometida e ativista decidida do feminismo e grande crítica do patriarcado. Entre suas obras, destacam-se La Cuerda Floja (1995); Jony Joi (2001); Maldita Perra (2004) y El Asado de Bacon (2007); Territorio Cercado (2016) Fuerza Bruta (2019). Ramiro Villarroel escreveu uma crítica literária para El Mostrator, com o título Retrato y autorretrato em Fuerza Bruta de Maha Vidal, onde diz que “Ao abrir este livro nos deparamos com a anatomia presa da desintegração, da corrupção, da violência ou doença, questões que nos fazem lembrar algumas ações de arte ou performance de Carlos Leppe, em “Sala de espera” ou no curta-metragem “Six men getting Sick”, de David Lynch”.