Sessão de terapia: Parte I – Um conto de Tita Martinuci
Tita Martinuci. Jornalista e revisora. Contista que se dedica também a dar aulas de yoga e a culinária vegana.
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Sessão de Terapia: Parte 1
O dia já começa errado, primeiro que perdi a hora quando deveria ter acordado mais cedo que o habitual, na verdade, há algum tempo não consigo mais acordar em um horário decente. Meu corpo cada vez mais cansado parece não repousar de fato, apesar de todas as horas dormidas, não desligo. Mesmo assim durmo, então me atrasei e não deveria. Ligo o chuveiro e um estrondo seguido de faíscas me avisam que a resistência foi para o saco, não tenho muito tempo para reclamar. Vamos de banho gelado, nem me importa que seja inverno, talvez seja a melhor maneira de despertar meu corpo.
Escolho uma roupa qualquer, afinal, ninguém vai reparar nesse mero detalhe. Saio de casa apressada desejando parar o tempo só para não me atrasar, nem tomo café, esqueço também o remédio da manhã, só quero chegar e voltar o mais depressa possível. Até que não me atraso tanto, digo meu nome para a recepcionista e sou encaminhada para a sala ao lado. É minha primeira vez aqui e essas situações são sempre estranhas, a ansiedade transforma pequenas realizações em processos dolorosos e como já não ando bem me atrasar desencadeou toda uma situação de alerta e mesmo sentada nesse sofá ainda me sinto de sobressalto.
A secretária parece notar a minha falta de controle, sorri e me oferece água. Não sei se quero, mas acho que trabalha aqui há bastante tempo já que aprendeu a ler os pacientes e percebeu minha boca seca e taquicardia. Pode ser só coisa da minha cabeça, aceito um café no lugar da água, seguro o copo quente como se fosse algum colete salva-vidas me impedindo de afundar. Sinto vontade de fugir, faltam cinco minutos para a consulta, poderia provocar uma queimadura com o café quente e sair às pressas, só que é nessa hora que a porta do consultório faz um rangido fino ao se abrir. Vejo o psiquiatra sair com o paciente anterior, penso em todas as vezes que já tentei isso antes, fazer terapia, tentar acalmar tudo isso que fervilha aqui, como o café na minha mão. Sempre que tentei, falhei, me sinto em constante falha com a vida e o que é pior, nem saberia dizer o que fiz de errado. Mas agora, como poderia confiar meus medos e segredos a uma pessoa que mal conheço? Aprendi que até mesmo as pessoas em quem confiamos são capazes de nos machucar. E por isso estou aqui, depois de tantos anos, tentando de novo.
O médico se despede do paciente, posso ouvi-los comentando algo sobre retorno no próximo mês. Retornos, eu poucas vezes retornei e quando o fiz o tratamento não seguia adiante, a fuga é talvez meu maior dom. Eu não consigo falar, então, na maior parte das vezes em que ia a terapia eu entrava em estado de torpor. Mesmo querendo colocar tudo que me calava para fora, silenciava. Parece que de certa forma agora eu havia chegado ao limite, já não dá mais, eu sufoco e tremo constantemente por não conseguir entender tudo que sinto. Nesse momento mesmo me sinto sufocada, engolida pelo sofá, minha vontade é sair correndo o mais rápido possível, mas é muito tarde para fugir quando o senhor parado à minha frente estende a mão.
– Lorena, muito prazer eu sou o Willian.
Tudo começa com um leve formigamento na ponta da língua, eu odeio essa sensação que logo desliza pela extensão da minha boca, sinto a musculatura do meu pescoço contraindo como se algo ficasse preso na garganta, o torpor começa a invadir meus sentidos, levantei e me senti tonta.
– Prazer doutor, boa tarde.
Não sei falar com estranhos, não sei como me portar, é como se não existisse o contato com pessoas fora do meu convívio. Na verdade, evito mesmo. Eu não sei lidar
– Vamos entrando.
A primeira coisa que noto ao entrar na sala ampla e clara é a quantidade de livros nas estantes, posso reconhecer alguns de poesia, outros sobre mitologia grega. Também me interesso por mitologia, ponto para você, doutor. Meu corpo denuncia minha tensão, meus braços continuam me abraçando como se precisasse me proteger de algo, sinto minhas mãos trêmulas e frias. Estou na defensiva e não sei o que falar. Sento no lugar indicado e mantenho os olhos fixos em um quadro na parede. Na verdade, ele está torto, talvez milimetricamente para algumas pessoas, não para alguém com TOC. Olhar o quadro torto, que na verdade não passa de um quadro tosco de paisagem morta, me ajuda a não focar nos olhos do William. Não sei por que, mas uma grande sensação de déjà vu toma conta de mim.
– Lorena, me fala um pouco sobre você e o que a traz aqui hoje. Vamos começar assim, pode ser?
Não tenho muito do que discordar, a parte em mim que se recusa a estar aqui já foi convencida de que é mais que necessário.
– Eu tenho trabalhado muito nos últimos tempos, quase não tenho conseguido descansar e meus ataques de ansiedade estão se tornando constantes demais.
Ok! É tudo verdade. Tudo bem que não contei quase nada, a não ser que tenho trabalhado muito. Pelo menos dessa vez não tinha inventado um absurdo qualquer só para sair dali correndo. Era verdade, talvez formal demais, sucinto e sem deixar muitos caminhos de uma abertura real. Nada diferente do que pratico constantemente.
– E o que tem sentindo?
– Fisicamente ou emocionalmente? Pergunto sabendo em que ponto ele quer chegar e em qual eu não quero.
– Dos dois, me fale dos dois.
– Sinto que estou o tempo todo correndo atrás de uma resposta para algo que não existe. E correr me falta o ar, sinto fadiga, um cansaço extremo, a boca seca, tremo e já não tenho forças. Mas corro e não queria correr, não sei por que corro. Eu entro em desespero e não sei parar. E quando me vejo nessas situações a minha vontade é sentar e chorar. Mas eu não posso parar.
Paro de falar e nada do que disse faz sentido. Sinto-me descompensada, rompendo com algo, o que me mantêm sóbria.
– E essa sua corrida, quando tudo isso começou?
Queria dizer que sei quando tudo isso começou, mas me lembro que a primeira coisa que senti na vida foi solidão. Eu devia ter uns seis anos e morava com minha avó em um sítio, à noite era tudo escuridão, o pouco de luz que iluminava alguns pontos da casa vinha das lamparinas. Eu estava na cama do meu quarto depois de levar uma bronca, o silêncio só era cortado pelo barulho das cigarras. As palavras dela ecoavam na minha mente e de alguma maneira eu sabia que não pertencia de fato aquele lugar ou aquela família. Mas não contaria isso a ele agora, então, respiro fundo e digo.
– Há três ou quatro semanas.
– Bom, pelo seu relato me pareceu ser algo mais antigo. O que aconteceu no último mês com você? Passou por algum estresse?
– Fui assaltada voltando do trabalho – realmente eu tinha sido assaltada algumas semanas antes – foi meu primeiro assalto em São Paulo e me assustou muito. Foi a primeira vez que vi uma arma apontada na minha cara.
– Pelo que falou não é daqui, de que lugar você é?
– Sou do interior, já morei no interior de São Paulo, Minas, mas sou do Paraná.
– Está aqui há muito tempo?
– Sim e não.
Percebi que posso ir longe demais com essa terapia e não estou muito a fim de me expor nesse momento, mas algo me contorce por dentro e não consigo me segurar.
– Na verdade sinto que não estou em nenhum lugar há muito tempo, porque não pertenço a nada.
– E sua família?
– Assunto complicado, teríamos que ficar nele por longas sessões. Talvez, nem assim pudesse entender. Nunca me senti em uma família, aquela questão de não pertencimento, sabe? Então não tenho contato com eles há anos.
– Aconteceu algo pontual? E os seus pais?
– Meus pais morreram quando eu era muito nova.
Primeira meia verdade, meu pai tinha desaparecido um pouco antes da morte da minha mãe em um acidente de carro. Aquela velha história do “foi comprar um cigarro e nunca mais voltou”.
– Fui criada pelos meus avós e tios, mas nunca tive uma boa relação com eles. Vivo sozinha desde quando consegui me sustentar e escolhi viver aqui, então, eles não têm muita relação com a minha vida.
Por algum motivo começo a contrair partes do meu corpo involuntariamente, sinto vontade de chorar, quero fumar. Meu olhar tenta se prender nos títulos nas estantes, não quero olhar para o rosto do, agora, meu psiquiatra. Um livro me chama a atenção, nesse instante faz um silêncio absurdo na sala.
– Li “Enquanto Agonizo” recentemente, é um livro fascinante.
Obviamente ele percebeu minha tática para trocar de assunto, e mesmo assim tenta me deixar à vontade.
– E o que achou dele?
– Gosto da cronologia dele, de como o tempo de espera é diferente para cada membro da família, a visão particular de cada um compõe o mosaico familiar, tão complexo e emaranhado pelas tradições e coisas não ditas. Isso expõe os conflitos e desdobramentos familiares. Sem contar que o Faulkner é um baita autor, né. Primeiro que eles estavam se preparando para perder a matriarca da família, né e nessa história de perda é muito difícil mensurar os sentimentos.
- Então comecemos daí, você disse que perdeu seus pais cedo.
Entrando em terreno perigoso pela primeira vez.
– Perdi minha mãe aos quatro anos num acidente de carro, meu pai tinha sumido no mapa uns meses antes. Depois de mais velha que descobri que minha mãe se matou consumida pela angústia.
Saiu, como se alguém apertasse o play de uma gravação antiga há muito tempo esquecida.
– E seu pai nunca mais apareceu?
– Não, pelo menos nunca mais tive nenhuma noticias.
– Você foi criada pelos seus avós?
– Pelos pais da minha mãe, mais pela minha avó já que meu avô era bem doente e ficou cada vez pior depois da morte da minha mãe. Mas eu vim aqui muito porque preciso de remédios para ansiedade, não para ficar afundando nessa história velha e batida.
– A sua história, você está dizendo? Precisamos achar a raiz disso para que você não viva presa a mercê da medicação. E eu gosto de histórias batidas e velhas.
– Tá, eu entendo e acho bacana isso, mas eu realmente preciso de remédio. Tenho perdido o controle de quase tudo, não consigo conviver com as pessoas, me isolo de todos e meu trabalho não rende, o que me faz gastar o tempo em que poderia descansar tentando ser produtiva. Eu sei que é seu trabalho, não quero parecer presunçosa ou algo do tipo, mas prometo continuar a terapia sem abandonar.
– Temos um acordo, então vou te receitar medicação suficiente para quinze dias e você volta para retorno depois desse tempo. Mas antes me diz quando as crises começaram realmente e quando se agravaram.
Entrando em terreno perigoso parte dois, agora é só ladeira abaixo.
- Eu tinha dezoito anos e estava no primeiro ano de faculdade, minha família tinha se mudado para uma cidade maior e vendido o sitio depois da morte do meu vô. Eu fui para uma festa da faculdade, bebi demais e acabei dormindo em um dos quartos, acordei com o cara com quem estava em cima de mim, eu era virgem. Depois disso passei semanas sem sair do quarto, sempre que precisava sair para locais muito movimentados tinha a sensação que ia morrer, meu corpo apagava, eu sufocava e não conseguia respirar. Meu primeiro psiquiatra me diagnosticou com agorafobia e ansiedade generalizada. Alguns meses depois disso eu larguei a faculdade e vim embora.
- Na sua ficha diz que você tem 25 anos, então convive com isso há sete anos.
– Sim, mas nunca contei esse episódio para ninguém, quem sabe é só quem presenciou. Preferi só sumir do mapa e esquecer tudo que me lembrava disso, mas a gente não apaga esse tipo de cicatriz assim, né?
– Você chegou dizendo que corre e não sabe do que e que isso te cansa. Você corre há pelo menos sete anos e não sabe do que? Tem certeza?
O que é a certeza, né? Não dá para saber nem se vamos resistir ao momento seguinte ou quando vai ser a ultima vez que vamos amar, quando vamos comer nosso doce favorito de novo ou visitar aquela praia que tanto gostamos. Nunca temos certeza de nada, nem de quem a gente é na raiz de tudo que isso significa.
– Lorena, você tá bem?
- Não tenho certeza, só sei que desde o assalto eu voltei a sentir tudo isso de novo, de maneira intensa e violenta.
Choro e tremo, minha boca seca instantaneamente, meus olhos escurecem e o ar se torna tão pesado que é difícil respirar, sou capaz de ouvir meu coração batendo nitidamente enquanto meu corpo é anestesiado e desliga. Não sei se é só a sensação de desmaio ou se realmente apago, nem quanto tempo demoro a retornar. Quando acordo me percebo não mais no consultório, mas no quarto de anos atrás.
- Lorena, fica um pouco deitada, vou te trazer uma água.
Nem que eu quisesse conseguiria fugir, não consigo me mover, Me afundo cada vez mais no sofá, estou entrando em terreno perigoso e ele é feito de areia movediça que está prestes a me engolir.
Continua…