Sete poemas de Eleonora Requena traduzidos do espanhol por Demétrio Panarotto
Eleonora Requena (Caracas, 1968): Poeta y tallerista literaria. Autora de Sed (1998), Mandados (2000), Es de día (2004), La Noche y sus agüeros (2007), Ética del aire (2008), Nido de tordo (2015) y Textos por fuera (2020). Su trabajo está incluido y/o reseñado en: Rasgos comunes, Antología de la poesía venezolana del siglo XX (Editorial Pre-textos), Cantos de Fortaleza, Antología de poetas venezolanas (Kalathos ediciones), Poetas venezolanos contemporáneos: Tramas cruzadas, destinos comunes (Común Presencia Editores), The Princeton encyclopedia of poetry and poetics, Las Palabras necesarias, muestra antológica de poesía venezolana del siglo XX (LOM ediciones). Obtuvo el Premio de la V Bienal Latinoamericana de Poesía José Rafael Pocaterra (2000) y el Premio Italia 2007 para la Poesía, certamen «Mediterráneo y Caribe», auspiciado por el Instituto Italiano de Cultura de Venezuela y el Centro de Poesía Contemporánea de la Universidad de Boloña. Ha participado en encuentros literarios en Colombia, Perú, México, República Dominicana, Argentina, Chile, Estados Unidos e Israel. Actualmente reside en Buenos Aires.
Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben) e consultor do projeto Procura-se um Leitor. Desde o ano 2000 ministra cursos nas áreas de Literatura, Música e Cinema. Dos eventos que participou no cenário nacional e da América do Sul vale destacar: P.E.R.I.F.É.R.I.C.O 2014 (residência musical) e Poética 2015 (residência de poesia), realizados no Espaço Cultural Escola Sesc – Rio de Janeiro-RJ; três etapas (compreendendo os estados da BA, PE e ES) do projeto Arte da Palavra, 2018, Circuito de Autores, SESC Nacional; Projeto Escola Escritora, 2019, curso de escrita para crianças, Sesc – Santa Catarina; e Vapoesia Argentina, Buenos Aires e Mendoza, 2021. Publicou, dentre outros, Mas é isso, um acontecimento [Editora da Casa, 2008, poemas]; Ares-Condicionados [Nave Editora, 2015, contos]; A de Antônia [Miríade, 2016, infantil]; 18 Versos para o funeral de Demétrio Panarotto [Papel do Mato Oficina Tipográfica, 2018, poemas], Tratamento da Imagem [Patifaria, 2018, conto]; Arquipélago [Patifaria, 2018, infantil], Lotação [Medusa, 2018, poemas]; Vozes e Versos [Martelo Casa Editorial, 2019, poemas], Cerzindo e Cozendo [Butecanis Editora Cabocla, 2020, poemas], Privado [Butecanis Editora Cabocla, 2021, contos], 6 Poemas [Butecanis Editora Cabocla, 2021, poemas, edição bilíngue, Espanhol/Português], mais alguns discos (Banda Repolho e projeto Irmãos Panarotto) e alguns filmes. Reside em Florianópolis-SC, Brasil.
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Sete poemas de Eleonora Requena
apresentação e tradução de Demétrio Panarotto
Acredito que há várias maneiras que determinam, que seja ocasionalmente (até de modo contraditório), o encontro com a poesia, com um gesto poético ou com o entendimento de que naquele lugar haja uma potência que não havíamos percebido anteriormente. O que me leva a acreditar, com um proposital tom de exagero, que poderíamos reescrever a história da Literatura, ou, de outro modo, reescrever aquilo que a partir do começo do século XIX se convencionou a chamar de Literatura.
Sabemos que, de modo colonizador, as artes (de uma maneira geral) seguem reproduzindo arquétipos do passado e que muitas de suas escolhas, mesmo diante de um mundo dinamicamente plural, são arbitrárias. O mundo segue lendo poesia, o que me interessa nesse texto, guiado pelo espectro do capital, aquilo que, a partir da revolução industrial, sempre esteve por trás das noções de arte. É praticamente suicídio falar nisso, afinal continuamos reféns: ou das dinâmicas rentáveis que movimentam o espaço literário (mesmo que a poesia aparentemente não de retorno); ou das políticas de estado e de seus jogos de poderes; ou das leituras críticas feitas pelas academias (inclusive as universitárias), na maioria das vezes, e muitas vezes sem perceber, em conluio com o estado e com o capital.
Outro mundo é e sempre foi ilusão (mesmo que em nenhum momento deixemos de acreditar que seja possível).
Afinal, os discursos de manutenção parecem amparados em pauzinhos de picolé, são sempre muito frágeis. O nosso contemporâneo aponta nessa direção. Não há mais como acreditarmos que o jogo poético seja feito única e exclusivamente por poetas academicizados, aristocratas, ou filhos (filhotes) dos mecenatos de estado. A poesia, em especial ela e de uma maneira ampla, é muito maior do que (ou muito mais que) isso. Assustadoramente, os jogos de interesses entre as partes envolvidas parece sempre maior.
Ponto.
Aqueci demais o motor para chegar no meu objeto de interesse, a lírica de Eleonora Requena.
A primeira vez que escutei (na abertura da nona edição do Vapoesia Argentina) a poeta – venezuelana que hoje vive em Buenos Aires –, lendo seus poemas, precisei fazer um esforço, como se a buscasse com a orelha, para ouvi-la. Havia ali duas situações montadas: a primeira, a questão da língua, afinal, naturalmente fizemos esse esforço quando lidamos com um idioma que não é o nosso; a segunda, era o fato de que Eleonora se expressava dessa maneira, ou seja, com uma voz contida, porque não, abafada, em alguns momentos emocionada, e, desse modo, nivelava o ouvido dos ali presentes para o seu tom de voz (sempre acho essa proposta de uma singeleza estonteante, afinal, se coloca naquilo que é o meu oposto: leio e apresento os meus poemas sempre em um estado de arritmia cardíaca).
Ouvir os poemas de Eleonora (e olha que não foram poucas as oportunidades, afinal, compartilhamos leituras em Buenos Aires e depois viajamos à Mendoza e durante duas semanas algumas tantas experiências cortaram o nosso caminho de maneira muito intensa), me levaram à sua escrita, com os olhos descobri uma outra potência nos versos, algo que os meus ouvidos não haviam oferecido com a mesma generosidade. No caso, uma lírica conceitual, auto-reflexiva, encharcada de linguagem contemporânea em um tom irônico, mordaz e, ao mesmo tempo, pontuado por alguns barroquismos: um choque entre esse contemporâneo e um passado que, contraditoriamente, é marcado por proximidades e distanciamentos (em algum momento esse jogo também era impulsionado pelo fato de usar expressões que são mais usadas no espanhol venezuelano). Acredito que a poesia tem esse poder de expor as mediocridades da sociedade contemporânea e o modo como essa mesma sociedade continua repetindo as mesmas mazelas que nos tornaram prisioneiros de um mundo que, publicitariamente (e de um tempo pra cá somente), ostenta (sem que realmente possamos perceber que haja) democracia e liberdade. Assim percebi a poesia de Eleonora, com uma potência no verso e à margem daquilo que me incomodava no mundo atual (e que montei nos primeiros parágrafos).
Não obstante, é preciso dizer que somos filhos do contemporâneo, mas somos também filhos de um passado que em algum momento parece, desesperadamente, em busca de algo que se convencionou a aplicar a palavra “novo”, que não deixa de ser, simplesmente, algo do passado. Ou seja, esse novo nada mais é do que “de novo”, algo que se repete, nossa, isso é tão primário que fico envergonhado de repetir, e o faço pois continuamos passando pelas mesmas veredas, todavia com a incapacidade de tornarmos isso claro e evidente (não para os outros, mas para nós mesmos). E acho que é esse o ponto que nos tira a capacidade de ler o passado e percebê-lo presente, talvez isso nos empobreça ainda mais quando nos colocamos em ponto de relação com qualquer outro momento da história, é esse o ponto que Eleonora parece evidenciar, com certa sutileza, em seus versos; talvez, ainda, esse barroquismo, a que me refiro, não deixa de ser uma maneira de buscar um diálogo com o passado.
O recorte escolhido o percebi em diálogo com isso que sinalizei nos parágrafos acima, atendendo a um percurso de escuta e de leitura, e, ao mesmo tempo, é um recorte que reforça a ideia de uma lírica atuante a partir das suas várias facetas. Ou, de outro modo, uma lírica que nos coloca diante de uma escritora que propõe, a cada livro, um desafio de escrita que também é de linguagem. O que me leva a crer que as linhas que traço estarão sujeitas a uma série de outras impressões a partir dos livros que confio estão por vir.
Por esse motivo parto de Callejón, um poema inédito em livro (editado na revista Sorbo de Letras), em que nele reconheço o elemento barroco acima citado (já no próprio título), em especial, quando Requena se movimenta pelas ruas do poema/cidade, como se montasse hoje uma cena que também seria possível de ser vista há alguns anos atrás, ao mesmo tempo que se movimenta pelas sinuosidades da língua.
O segundo e o terceiro poema, são de seu primeiro livro, De Sed (1998):
sobre Caos, guarda alguns elementos do poema anterior, a ironia em meio a causalidade, todavia a partir de uma edificação bem distinta. Mesmo que possamos pensar que o caos da cidade dialogue com a escrita e, assim, também percorra a lírica de Eleonora;
e Te preguntas para qué has de escribir, por sua vez, nos fala das inquietações do trajeto que movimenta a vida dos escritores, ou seja, porque motivo escrevemos se, afinal, acabamos por validar àquilo que supostamente criticávamos? Ou, de outro modo, onde a escrita que contesta também compõe o bojo daquilo que valida. É, através da escrita, as inquietações entre o estar e o não estar.
La Cama, do livro De La Noche y sus agüeros (2007), mantém a ironia já aqui anunciada. É como se o poema nos perguntasse, assim com o dedo em riste, com quem andamos? com quem nos deitamos? ao lado de quem estamos(?) em um mundo em que a nossa cama pode, e porque não será, o nosso próprio leito de vida e de morte.
E para fechar a sequência, três poemas de um de seus livros mais recentes, Textos por fuera (2020, El Taller Blanco Ediciones, Colômbia), um livro que, como o próprio título nos revela, é uma reunião de impressões poéticas que se monta desde aforismos até poemas em um tom de ironia (como os demais enunciados), todavia amplificados através de uma certa crueza no uso das palavras, talvez contundência:
escriba é um desses poemas, e o tema em torno da escrita aqui se repete em um tom taxativo, mas absurdamente irônico, afinal, nos interroga onde está o ponto entre o autoritário e aquilo que é o relaxamento em relação ao prazer do texto, que está em quem escreve (na riqueza proposta e no jogo das palavras) e também em quem o absorve, algo entre a existência do escritor e do leitor, aqui, percebam, a ironia é vertiginosa;
de cabeza el cielo é algo como um mundo virado de ponto cabeça mesmo que pareça o mesmo; algo que, muitas vezes, nos impossibilita de entendermos as relações entre o céu e a terra, claro, uma das magias da poesia;
la cata, um poema que, pela sua configuração, é bem diferente dos demais do livro e que nos aproxima das experiências com a poesia que saem da escuta, passam pela leitura, mas que ganham outro jogo nas experiências etílicas enunciadas em uma mesa de bar. Percebam que o poema se mantém em Língua Portuguesa em um nível de entendimento que pode ser amplificado se dissermos que a palavra “cata” e “chupeta”, no espanhol, é o que aproxima o poema da ideia de degustar vinhos e beber (chupando una cerveza). Pois bem, um barco ébrio, para citar Rimbaud. Com ele, ainda, posso encerrar o texto, afinal, Une saison en enfer, porque não, também pode ser traduzido como Uma Cerveja no Inferno, algo que aplica uma certa distração a essas várias temporadas em torno da escrita.
Boa leitura
Veredas
rua estreita, sem iluminação, becos
rua curta, impossível de penetrá-la
tranqueiras, latões, descartes
improviso de roupas secas sol no céu
rua cega, rua solitária, rua escura, sem saídas
calçada, paredões, desencontros, rua e ponto
calada, caladinha, calamitosa, rua sempre
cale agora, obediente
/
Callejón
calle angosta, sin faroles, calleja
calle breve, de solo entradas traseras
trastes, potes, tiradero
tinglado de ropas secadas al sol en el cielo
calle ciega, calle sola, calle oscura, sin salidas
vereda, paredón, parqueo, calle y punto
callada, calladita, callamiento, calle siempre
calle ahora, obediente
*
sobre o Caos
Quando escrevo
pego as palavras de algum lugar esquecido
cubos de espera caem
e se espraiam pela folha
ferradura sol esteira
Jogam com a sorte de seus nomes
no leque encruado das incertezas
Nas noites são outros os rostos
outros os espelhos
então as palavras brilham ou atormentam
neste caso rodam em um jogo de azar perecível
achado solitário na espessura de una lágrima
A luz tende a ofuscar as vozes
e a percorrer novos espaços
é a algaravia de algum louco
ou uma tristeza inadvertida que se esconde
Pode acontecer o que foi calculado
e jogar todos os presentes no exílio
Ou o contorno destas letras esfumaça
qualquer coisa
/
sobre Caos
Cuando escribo
tomo las palabras de algún remoto olvido
cúbicas de espera caen
y se esparcen en la hoja
herradura sol estera
Juegan a sortear sus nombres
en el abanico crudo de la incertidumbre
En las noches otros son los rostros
otros los espejos
entonces las palabras brillan o atormentan
en tal caso rotan en su azar perecedero
hallado íngrimo en lo espeso de una lágrima
La luz tiende a opacar voces
y a recorrer nuevos espacios
es la algarabía de algún loco
o una tristeza inadvertida que se esconde
Puede suceder lo calculado
y arrojar todos los dones al destierro
O el contorno de estas letras esfumarse
cualquier cosa
*
Te perguntas para que tens de escrever
se diante do livro de poemas preferido
todas as palavras nomeiam o que
teus sonhos desenharam
e estás cheio de imagens esquecidas
te comoves com um mínimo de som
o sopro das coisas persistindo
enquanto adentras à tarde
e já é imperativa tua renúncia
então entendes que calar
é o poema
/
Te preguntas para qué has de escribir
si ante el libro de poemas predilecto
todas las palabras nombran lo que
tus sueños dibujaron
y estas pleno de imágenes ajenas
te conmueves con un mínimo sonido
el soplo de las cosas persistiendo
mientras entras en la tarde
y ya es imperativa tu renuncia
entonces entiendes que callar
es el poema
*
A cama
A cama é una tábua solta na proa,
apenas um fragmento do grande barco que ontem à noite afundou.
a manhã estimula distâncias entre as pestanas,
crava talos nos tempos de narcisos.
quem sobreviveu a um naufrágio não é um herói,
somente conservou quatro moedas dentro dos bolsos,
na destruição soube agarrar-se à madeira
que o distanciou do azar,
ao se livrar dos pesos de seus casacos.
então acordar,
estrangeiro,
turvo entre as savanas de areia,
inocente de seu próprio truque
/
La cama
La cama es una tabla de la proa desprendida,
apenas una triza del gran barco que anoche se hubo hundido.
la mañana ceba trechos entre las pestañas,
clava en sienes tallos de narcisos.
quien sobrevivió a un naufragio no es un héroe,
sólo conservó cuatro monedas dentro del bolsillo,
en el zafarrancho supo asirse a la madera
que le arrimó el azar,
aligerarse de los pesos de su abrigo.
luego despertar,
ajeno,
turbio entre las sábanas de arena,
inocente de su propia treta
*
escreva
desde a outra cadeira, por favor
mais distante
do pranto, do trono
do desejo
os cotovelos sobre a mesa
sem máscaras
sem medo
/
escriba
desde otra silla por favor
más lejos
del llanto, del trueno
del deseo
los codos sobre la mesa
sin máscaras
sin miedo
*
de cabeça para baixo o céu
segue sendo o céu
o sangue galopa e luta para sair
através das orelhas, nariz
o solo derrama o adquirido
nada cresce abaixo do ar
exceto as raízes para cima
/
de cabeza el cielo
sigue siendo el cielo
la sangre se agolpa y pugna por salir
a través de las orejas, la nariz
el suelo derrama lo adherido
nada crece bajo el aire
salvo las raíces hacia arriba
*
a pro
va é u
ma chu
peta ver
melha
de memó
ria disse-
lhe sem nun
ca saber
que o ta
to da
língua
é uma i
deia
/
la ca
ta es u
na chu
peta ber
meja
de memo
ria dice
lo que nun
ca sabes
es el tac
to de la
lengua
es una i
dea
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(Fotografia [Panarotto] de Pati Peccin [detalhe em p&b da versão original colorida])
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Demétrio Panarotto: