Sobre listas de livros e pilhas de referências – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada a poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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Eu adoro listas. Essas listas de livros e filmes imperdíveis. Leio todas, não procuro achar quase nada. Comparo minha percepção com a da pessoa que elaborou a lista, como um jogo da memória. “Dom Casmurro”, eu vejo na lista e penso: “Um dos meus preferidos também! Um ponto! ”. Enfim, no final das contas, para mim, é uma brincadeira divertida em que me sinto totalmente confortável em avaliar e julgar as listas alheias.
Grande parte dessas listas de livros divulgadas nas revistas e nas mídias digitais recebe a crítica da falta de diversidade. Muitas delas são elaboradas por grandes nomes da literatura ou acadêmicos conhecidos. Mas a questão não é bem a falta de diversidade em si. O que falta é leitura fora da orientação tradicional para obras escritas por homens brancos. Entre os homens brancos há diversidade: alguns escrevem prosa, outros, poesia, dentro disso há os que investigam a existência humana, outros que produzem romance regionalista ou de ficção científica, uma gama de outros estilos, gêneros e temas. A lista está posta a partir de quem lê e de quem é lido. Sabemos quem lê quem… e quem tem visibilidade na mídia. Nomeando: em geral, homens leem homens, homens brancos são convidados a darem seu parecer sobre o estado da literatura contemporânea, são solicitados a compartilhar suas preferências. Mulheres são lidas por mulheres. São apreciadas por mulheres. Entre invisibilidades e silenciamentos, pessoas negras mal entram no jogo.
Eu mesma tenho dificuldade de elaborar uma lista de obras preferidas. Minha lista vai mudando, mas continua centrada em mulheres e tendo como primeiro lugar, há já alguns anos, Ponciá Vicêncio, romance de Conceição Evaristo. Esse é, para mim, o único ponto irritante das listas alheias: quando não citam Conceição Evaristo. Apesar de parecer que todos a conhecem, contatamos que a conhecem sem ler sua obra, como a própria autora já expôs. Ou a leem sem entender/reconhecer a estatura de sua poética. Ou ainda leem e reconhecem seu posto de autora antes os/as melhores e, por isso, a encobrem e silenciam.
Voltando à questão das listas… a verdade é que mais do que de listas, eu gosto de referências. Um gosto irresponsável para pessoas ansiosas. Mas como disse anteriormente, não vou atrás de tudo que vejo nas listas, nos livros, nas bibliografias. Tenho muita admiração pelas pessoas que escrevem com fluidez e referências. Não me refiro a artigos acadêmicos com citações e notas, mas sim a ensaios, crônicas e escritas livres que articulam realidade, experiência pessoal, memória, poesia, teorias diversas, cinema, telenovela etc. Nada de minimalismo. Gosto desse acúmulo e percebo que ando em busca de encontrar meu tom nessa forma de escrita.
O último livro que me proporcionou essa leitura prazerosa, vigorosa e cheia de referências foi O mundo desdobrável, de Carola Saavedra. Leitura que, aliás, inspirou a coluna da quinzena passada, junto com a série Em terapia, da HBO.
Na quarta temporada da série, o personagem Eladio, interpretado por Anthony Ramos, traz uma série de referências literárias latino-americanas para a conversa com sua analista, Brooke Taylor, interpretada por Uzo Aduba. Fiquei fascinada pela forma como Eladio se comunica e pela forma como ama: estranha, profunda, frágil, fraturada. Quis ler/reler os autores aludidos por Eladio, inclusive Clarice Lispector, que não releio há alguns anos. Mas ao mesmo tempo, não é que eu precise ler, é que crio forte identificação quando percebo pessoas/personas da ficção e da realidade que têm na literatura (de todo tipo) um lugar de investigação interior e autoconhecimento. Saavedra mostra isso ao pensar o mundo na pandemia a partir da sua pesquisa sobre literatura indígena e de suas próprias raízes indígenas e ao refletir sobre a produção literária de grupos minorizados, sobre a recepção dessa literatura, muitas vezes desconsiderada pelos grupos dominantes da sociedade. Tudo isso entremeado com textos literários em prosa e verso, enquanto fala também sobre ser mãe na era do home office e cria um jardim em seu apartamento (aí está o Fícus Lyrata).
Há tanto diálogo a fazer, tanta coisa para ler, há tanta auto investigação (e investimento) nesse processo que as polêmicas ficam pequenas. As listas irrelevantes e seus autores obsoletos.