Sobre o suicídio de um amigo – Por Lealdo Andrade
Lealdo Andrade cresceu em Aracaju-SE, morou durante 14 anos em São Paulo-SP e hoje se encontra em Winnipeg, no Canadá. Tem alguns contos, resenhas, traduções e poemas publicados em veículos on-line e em sua página (clique aqui).
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Sobre o suicídio de um amigo
Um ensaio
Em 30 de janeiro deste ano, pela primeira vez eu perdi um amigo porque ele se matou.
A informação do suicídio chegou a mim no mesmo dia, por uma ligação no WhatsApp. Ele morava em São Paulo, no mesmo quarteirão da Frei Caneca que compartilhamos por algum tempo. Não estou mais no Brasil; não o via fazia mais de um ano. Sabia de seu histórico de depressão, e posso me recordar com distinção de seu olhar por vezes descrente e melancólico. Por otimismo, ignorância ou negação, raramente acreditamos que isso se materializará em suicídio para alguém tão próximo. Começamos com o choque da notícia, então lutamos contra aquela óbvia irrealidade e por fim nos prostramos, esmagados pela frieza do fato. Ao fim, me lembrarei daquele dia como um dos mais tristes da vida.
Quatro meses antes de meu amigo se matar, eu havia terminado de escrever um conto longo, denso, cheio de voltas e hesitações propositais. Havia trabalhado nele pelos meses anteriores, impulsionado por algo que não sei o que é. Sem saber sequer se estava legível, entreguei-o para outros lerem. Após algumas semanas, foi publicado num site literário. Fiquei feliz: a publicação dava algum ar de sucesso ao meu trabalho, e meus amigos tinham-no elogiado.
Um dos temas deste conto era o suicídio.
O suicídio, acredito eu, não aparecia tanto como uma reflexão sobre o ato em si, seus motivos e sua lógica, mas sobretudo como uma provocação: ao leitor, à sociedade, a mim mesmo. Talvez como um artifício de choque, talvez como uma ferramenta para com alguma esperança capturar os olhos de quem lê ficção numa era de saturações.
Nunca senti qualquer atração pela ideia de me matar. Escrever sobre o tema veio de um impulso sobretudo estético, na medida em que entendo como preocupação estética refletir sobre o que é o fim para tantos, mas que até então havia sido distante para mim.
Escrever este ensaio é também uma tentativa de me entender.
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Eu, que pelejo com amigos contra o que considero autocensura numa era de pudores, agora me pergunto se fui responsável com o assunto.
Um dos caminhos pelos quais abordei o suicídio foi o humor negro (ou seria melhor chamar de humor macabro?), onde o risco da ofensa é inerente. Ele é muitas vezes utilizado na arte de maneira rasa, para extrair um sorriso fácil a partir do sofrimento alheio. Ele é também uma das formas de lidarmos com temas que somos incapazes de encarar de olhos abertos, por receio da superficialidade, do melodrama, do fracasso. Saímos pela tangente ao transformar a tragédia em piada.
É raro encararmos algo de frente hoje em dia. Não me refiro apenas à dificuldade de escritores com seus temas; falo de todos. Tudo é mediado, tudo é tangenciado. Quase tudo nos chega pela mídia. Quando então acontece conosco, buscamos de modo instintivo a mediação: músicas para nos explicar o que sentimos, cenas semelhantes em filmes, seriados e novelas para sabermos como reagir, conversas com psicólogos para com sorte medir a profundidade do buraco. Por isso o choque na arte é um paradoxo: usamos um meio artificial, a arte, em busca de algo natural, o choque.
Outro efeito que tentei incutir no texto foi a naturalização do que não é natural. O humor negro pode fazer parte disso e é muitas vezes utilizado como modo de naturalizar algo (ao causar graça em vez de choro, por exemplo), mas não se trata do único modo de fazê-lo. Podemos tentar naturalizar algo ao recusar descrições chocantes, ao quebrar o choque dramático esperado de certa ação, ao diminuir ou mesmo extirpar a emoção que seria esperada de um evento. Do suicídio, por exemplo.
Uma das poucas certezas que tenho é que não escreveria aquele conto da forma que escrevi se tivesse que fazê-lo agora. O peso de saber que aquele tema antes abstrato se tornou algo próximo e concreto me faria pensar em como e se o abordaria. Aquele conto, é provável, nunca seria finalizado.
Descobri assim que nem todo silêncio é autocensura.
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Quando soube da notícia no dia 30 de janeiro, eu estava me exercitando, correndo sem sair do lugar, suando de forma patética num elíptico. Talvez nevasse na rua; é certo que fazia vários graus abaixo de zero, num dos invernos mais frios do mundo. Mas esse não era o único motivo pelo qual eu caminhava num elíptico. Com a pandemia, quase toda a cidade estava fechada. Em nome da vida, nos isolamos todos; em nome da vida, eu marchava ancorado numa máquina, sem ter consciência que meu movimento era inútil em mais de um sentido: não apenas estava preso àquele espaço, estava preso também a uma realidade onde a morte é o destino comum, com ou sem pandemia.
Os clichês se tornam clichês por boas razões. Há na hora a sensação de descrença, a impossibilidade de se acreditar que aquilo está de fato acontecendo. Há o susto de entender que algo que você só conhecia em teoria, e que punha noutros textos de forma mais ou menos leviana, se tornara então algo palpável.
O WhatsApp, que tanto facilitou o trabalho da morte no Brasil ao banalizar o acesso ao inconsciente afetivo de milhões de pessoas, não foi somente a ferramenta que me permitiu ser avisado, de outro continente e poucas horas após o evento, que meu amigo havia se matado em São Paulo. Ele, em sua onipresença nas relações afetivas, familiares e amistosas, também passou a servir de repositório das últimas interações que tive com meu amigo. Um áudio contando uma piada escrota, enviado de ressaca no sofá, pode ser o documento que lhe permitirá se recordar da voz, do sotaque, da escolha particular de palavras de alguém. Três frases digitadas com pressa durante o jantar podem se tornar o último registro escrito que outra pessoa guardará de você por décadas.
Da mesma forma, uma troca de frases no Messenger sobre uma ida a um bar, um comentário jocoso numa selfie no Facebook, uma hashtag de cuja existência você nem se lembrava: todos são registros efêmeros mas que a princípio permanecem após a nossa partida, ao menos enquanto as empresas californianas desejarem mantê-los disponíveis a todos. Seus dados nas nuvens não somem com a sua morte.
Fico feliz que exista ao menos essa vantagem na vigilância esmagadora das redes sociais: depois que morremos, nossa voz, nossas palavras, nossos rostos estão muito mais acessíveis para quem estava próximo. Essa montanha banal de dados será em muitos casos o registro pós-vida mais imediato e palpável para quem nos amou.
Se eu não fizer um backup cuidadoso do que está no meu WhatsApp, posso perder as últimas mensagens que recebi do meu amigo. Gravar de forma mais duradoura essas banalidades é uma forma de lutar contra o esquecimento numa era de eternas novas urgências.
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Há um paralelo óbvio e imediato entre as nuvens do paraíso e as nuvens digitais. Essa figura de linguagem já deve ter sido gasta no jornalismo em algumas línguas diferentes. É difícil ser original quando se tem um prazo apertado e a motivação primária são cliques.
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Minha própria memória, longe de ser fotográfica, é decente para o longo prazo (o curto prazo, aquele mais pragmático de todos, é outra ciência). Costumo me lembrar com razoável clareza de trechos de conversas, cenas e aventuras de rotina que passei, sozinho ou acompanhado, anos depois. Uma das minhas maiores fontes de prazer é me recordar de situações (de preferência positivas, mas não só) que vivi: uma aula de guitarra na qual aprendi uma música dos Beatles, um ônibus que alcancei à base de corrida numa manhã específica de prova na faculdade, uma sessão solitária de um filme mediano, uma transa desajeitada mas marcante, uma piada arriscada que surtiu o efeito almejado num círculo de pessoas desconhecidas.
Naquele quarteirão da Frei Caneca que compartilhávamos, não raro nos encontrávamos por acaso na rua: o tipo de encontro para o qual São Paulo não foi feita. Consigo refazer a imagem do meu amigo naqueles fins-de-semana ensolarados, de chinelo e sorridente na rua, acenando para mim com a sua postura alta e curvada. Tenho mais dificuldade em reconstruir as nossas conversas. Tampouco tenho acesso à sua voz: me recordo dela, porém através da eterna mancha de dúvida que contamina o que está apenas em nossos neurônios. Para ouvir a sua voz e assim refrescar a lembrança, apenas pelos áudios banais de WhatsApp.
Escrever este ensaio é também uma tentativa de reconstituir o meu amigo.
Isso na verdade pouco tem a ver com as características físicas dele, com o que ele optava por dizer ou não, com o seu modo de escrever. Essa procura aponta para algo mais interno, difícil de discernir e portanto de extrair.
Quem sabe eu possa reencontrar o meu amigo no local que ele ocupava em minha memória. Apreciar uma companhia é em grande parte gostar das lembranças de estar com aquela pessoa, mesmo quando essa pessoa ainda está viva, mesmo quando ela ainda ao nosso lado. Isso abre ao mesmo tempo vários caminhos positivos e, em igual montante, armadilhas. A recordação de como um período específico da vida – sozinho, acompanhado, pouco importa – foi bom pode sugerir, dar forma e norte a futuros reencontros; pode também gerar uma expectativa e um molde frustrantes. Estamos presos àquilo que lembramos.
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Não buscamos a vida com desespero somente ao nos exercitarmos. Fazemos o mesmo ao abraçar alguém, ao transarmos, ao nos procriarmos, ao esvaziarmos uma garrafa de uísque com dois amigos. Me pergunto se estamos o tempo todo, de forma consciente ou não, fugindo da morte, seja ao tentarmos prolongar nossa existência, seja ao nos tornarmos insensíveis o suficiente por algumas horas para não nos lembrarmos de seu fim.
Alguns de meus maiores arrependimentos na vida são de quando bebi demais, em alguns aniversários por exemplo, e acabei por me privar do melhor presente que poderia ter me dado: uma futura lembrança.
Sempre entendi a amnésia alcóolica como um tangenciamento da morte em vida, em seu bloqueio às recordações. Outro tangenciamento, obrigatório e diário, é o sono. Chamo de tangenciamentos, mas poderia talvez chamá-los de preparação, de aquecimento, de antecâmara.
Há os tangenciamentos, mas há também a lenta, gradual e inevitável marcha, com maior ou menor pressa a depender de cada um. Muito antes de meu amigo cometer suicídio, o envelhecimento já vinha se tornando tangível para mim e para ele. Não são poucos os amigos da mesma idade – 30 e poucos, 30 e muitos – que apresentam em menor ou maior intensidade problemas crônicos de saúde. Nem eu nem ele fugimos à regra.
Suar num elíptico em 30 de janeiro era uma tentativa de retardar esta marcha. Reduzir o álcool, tão presente na minha vida por mais de uma década, é outra. Na maior parte das melhores recordações que tenho com amigos entre os 20 e os 30 anos, estamos quase todos bebendo: esvaziando garrafas até os olhares se turvarem, a língua perder a sua força e o discutir se tornar inútil. Por que bebemos tanto?
Entre essas melhores recordações, estão várias com o meu amigo. Me recordo de sua risada, de seus deboches, do dia em que o carregamos para casa desmaiado no carro após seu aniversário, em que ele bebeu como eu bebia nos meus. Ainda me lembro da maior parte desse dia; ele provavelmente se lembrava de muito pouco.
Escrever este ensaio é também uma tentativa de entender de onde vêm os meus impulsos destrutivos, pois não sinto a menor pressa em acelerar esta marcha.
Meus dois tios maternos são alcoólatras. Um deles morreu há pouco tempo, literalmente enquanto bebia. O que nos atrai em algo que tanto mata? É provável que hoje mesmo, algumas horas após escrever essa frase, eu beba algumas cervejas. Aceleramos todos o ritmo da marcha, um gole por vez.
A ressaca não é apenas um sintoma físico; é a recordação de quem ao fim vencerá o jogo.
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Escrever este ensaio é também uma tentativa de despedida.
Não vou fazer aqui uma lista extensa de momentos que compartilhei com ele. As minhas descrições, apressadas ou oblíquas, não fariam jus ao que vejo quando fecho os olhos. Odeio banalizar o que é sagrado; um dia em que você assiste com o seu amigo ao seu time ser campeão da Libertadores após anos de expectativa tem o direito de se tornar sagrado a partir do momento em que a nossa religião é a experiência, a memória, o esquecimento da marcha propiciado pelo êxtase coletivo. Êxtase tão burro, sublime, humano e inevitável quanto qualquer outra coisa.
Tenho sincera dificuldade em responder o que quero para o futuro. Algo que no entanto sei que desejo é que, entre neurônios desgastados e dados armazenados décadas antes, a minha memória permaneça boa o suficiente para eu me lembrar do meu amigo tal como o conheci. Ele sendo quem sempre foi, enquanto eu mudo, adquirindo novos prazeres e preocupações. Ele se tornando diferente nas ondas da lembrança, enquanto eu percebo como, por mais que lute, sempre terei sido o mesmo. Ele com a sua postura curva e sua recusa à vida permanecendo jovem para sempre, enquanto eu envelheço e começo a me preparar para reencontrá-lo.
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