#Tbt Cine – “Mary & Max – Uma Amizade Diferente” (2009)
Mary & Max – Uma Amizade Diferente. Direção: Adam Elliot. País de Origem: Austrália, 2009.
Em 2003, Adam Elliot foi laureado com o Oscar de melhor curta de animação por Harvie Krumpet, que narra a história de um imigrante polonês que tem Síndrome de Tourette, atraí toda a sorte de tragédias e carrega consigo algumas excentricidades, mas que se mantém otimista para se posicionar no mundo. Já, no longa-metragem Mary & Max – Uma Amizade Diferente (2009), Elliot conta a amizade improvável de uma criança desajustada e um pária social, separados por continentes, que se desenvolve a partir de troca de cartas e o desejo de se encontrar um apoio ou uma relação verdadeira, mesmo que seja a distância. A animação é baseada em fatos reais.
Esse mote confere ao longa-metragem de Elliot – realizado por meio da técnica da animação “em massinha” (ou claymation) – sua autenticidade e nos faz perceber que uma profunda ligação está para além dos sentidos (e da presença). O filme se inicia em 1976 – cobrindo décadas da vida das personagens. Mary Daisy Dinkle reside nos subúrbios de Melbourne. Ela tem oito anos e é uma criança solitária, vivendo em um lar desestruturado, com uma mãe cleptomaníaca e alcoólatra e um pai distante, extremamente devotado ao trabalho para mascarar sua infelicidade. Para complicar a sua situação, Mary é vítima de bullying na escola. Um dia, no Correio, ela tem a ideia de escolher aleatoriamente um nome na lista telefônica e se corresponder com a pessoa contemplada. Assim, ela “encontra” Max Jerry Horovitz, um judeu que mora em Nova York, de 44 anos, também solitário, com uma imensa dificuldade de se relacionar com outro ser humano, que sofre de obesidade mórbida e tem Síndrome de Asperger.
Tecnicamente, Mary & Max – Uma Amizade Diferente apresenta algumas imperfeições, porém ainda assim as expressões e movimentos impressionam (com menos impacto que nas produções do britânico Nick Parker, de A Fuga das Galinhas [2000] e Wallace & Gromit: A Batalha dos Vegetais [2005]). Esses “pecados” são facilmente assimilados e ignorados pelo que pode ser depreendido do conteúdo manifesto pelo longa a partir da relação epistolar estabelecida entre a criança e o nova-iorquino.
Com uma fotografia que mescla um tom expressionista – notadamente na representação do mundo de Max – com esquema de cor sépia quando Mary está em cena (grande destaque do longa), Elliot capta como as cartas, obviamente, os acontecimentos, conselhos, lições e medos expostos e retratados nelas, começam a repercutir na vida dos protagonistas. Não sem quase ser vencido pela ansiedade, Max inicia a correspondência com Mary. E ela, reunindo toda a sua determinação e esperança – há em seu gesto também a euforia da ingenuidade infantil –, torna o homem desconhecido o seu melhor amigo, alguém para escutar e sentir seus temores, compartilhar seus gostos e auxiliá-la na busca de encontrar seu lugar no mundo.
O problema é que o seu amigo-benfeitor-conselheiro é alguém que lida diariamente com os seus próprios “monstros”. Nesse sentido, muitas das cartas de Mary despertam nele lembranças dolorosas, de bullying, inadequações e perdas. As reações de Max são realistas, deixando-a à beira de um ataque de nervos irreversível. Por caminhar próximo ao desespero, mas ter bom coração, Max é um personagem que causa empatia e tristeza.
E essas sensações chegam ao espectador por Mary & Max – Uma Amizade Diferente mergulhar na psique humana observando sem receios ou recuos o lado sombrio da vida humana. A animação nos faz deparar com significativo repertório de vícios – a mãe de Mary, por exemplo, consome álcool como quem bebe água –, transtorno alimentar, depressão, doenças mentais, solidão, disfunção familiar e nossas pequenas (e grandes) crueldades diárias. Além disso, invertendo os polos, há a busca pela própria voz, a descoberta do amor e do desejo sexual e a construção da identidade. Mary & Max trata de crise, mas também de amizade, dos efeitos gratificantes de aceitação e da afeição. A vida é de altos e baixos, justamente por isso a amizade também o é, e os protagonistas passam por fases de curtos-circuitos e ruídos.
A trilha sonora envolvente e luminosa – que tem desde Que Será Será (Whatever Will Be, Will Be), na voz de Pink Martini, à ária The Humming Chorus da ópera Madame Butterfly de Giacomo Puccini – colabora para atmosfera de uma animação que se arrisca a ir do divertido ao soturno, sem medo de lidar com os sentimentos de seus personagens, podendo ser uma reação mínima – como a conquista do vizinho de Mary que tem agorafobia, no entanto, precisa sair de casa – ou um gesto drástico para o alívio das dores emocionais, como o suicídio.
O longa-metragem tem narração em off, o que leva à questão se o envolvimento com as personagens não seria ainda mais profundo, dispensando a intermediação de um agente onisciente. De certo, não atrapalha em nada a experiência, que precisa de poucos diálogos para apresentar um mundo complexo e sombrio. Nisso, as personagens secundárias têm grande contribuição, a destacar Vera, a mãe de Mary e a vizinha de Max, uma mulher com problema de visão que também carrega os reveses do existir. Damien, o rapaz pelo qual Mary é apaixonada, destoa pela composição frágil da personagem, que parece estar presente apenas para a jovem experimentar o amor, com sua magia e frustrações.
Max & Mary – Uma Amizade Diferente é simples, apesar de seus temas espinhosos, e se beneficia enormemente de sua simplicidade ao costurar a ligação entre Mary e Max a partir da troca de presentes e receitas inusitadas. Entre eles, não há julgamentos, já que a indiferença e olhar do Outro são facas de dois gumes e motores para crise existencial, melancolia e pânico. Como já mencionado, há alguns desencontros e momentos não harmônicos na relação dos amigos, mas essa é mais uma lição – que não tem nada de moralista – da animação de Adam Elliot, já que na vida há descompassos e dissonâncias. Justamente por isso que Max & Mary – Uma Amizade Diferente mostra-se relevante, por não disfarçar que a vida é dura e injusta, e pessoas sofrem, até o nível do absurdo.
Mary & Max nos conduz pelas fragilidades humanas, mas instiga-nos a perceber o valor da amizade, da diferença – logo, da individualidade – e do apego aos sentimentos que criamos, alimentamos e partilhamos. Na vida, topamos com desventuras, mas não há tempestade que se prolongue até o infinito.
Max & Mary – Uma Amizade Diferente nos faz rir e chorar, como a notável animação para adultos e crianças que é em essência.