#Tbt Cine – “Preso na Escuridão” (1997)
Preso na Escuridão. Direção: Alejandro Amenábar. País de Origem: Espanha, 1997.
“Abre los ojos” é o título original do filme de Alejandro Amenábar, que, após uma estreia incensada pela crítica em Morte ao Vivo (1996), hoje traz em seu currículo obras relevantes do porte do suspense Os Outros (2001), estrelado por uma iluminada Nicole Kidman, e Mar Adentro (2004), drama sobre eutanásia e desejo de viver baseado na vida do poeta Ramon Sampedro. “Abre los ojos” é também a primeira e a última frase dita em Preso na Escuridão, produção de 1997. Isto é, alfa e ômega de um thriller psicológico, com altas doses de suspense, que tem em seu bojo assuntos como escolha, identidade, individualismo, o real versus o virtual e criogenia.
Cesar (Eduardo Noriega) é herdeiro de uma fortuna e de uma rede de restaurantes. Rico e bonito, vive como um Don Juan, gabando-se de não repetir suas conquistas na cama. Até que uma noite, em seu aniversário, conhece Sofia (interpretada por Penélope Cruz), interesse romântico de Pelayo (Féle Martínez), melhor amigo de Cesar. A atração/ligação entre eles é imediata. Porém, o envolvimento de Cesar com Nuria (Najwa Ninri), uma jovem compulsiva obcecada pelo playboy, leva a um desenlace trágico: Nuria atira o automóvel que dirige, com Cesar como passageiro, para fora da estrada. Ela morre no acidente. Ele fica desfigurado.
A narrativa não linear cobre o encontro de Cesar com Sofia, os atos desesperado de Nuria e os atritos que surgem com Pelayo a partir da escolha de ignorar os sentimentos do amigo; a conversa entre Cesar, que faz uso de uma máscara facial, e o psiquiatra Antonio (Chete Lera) em um Hospital Penal, que tenta descobrir os motivos que levaram o jovem a cometer um homicídio; a luta de Cesar para superar a deformidade ocasionada em seu rosto pelo acidente e a reconstrução de sua face. A partir disso, a montagem de Maria Elena Sáinz de Rosas engendra um labirinto (passado/ presente futuro) em que sanidade e loucura, pesadelo e realidade se interpenetram causando curtos-circuitos na mente de Cesar e conduzindo o espectador a um jogo em que ilusão, duplicidade e correntes emocionais criam uma prisão no qual certezas e medos movem o indivíduo-consumista às portas do século XXI.
Na primeira cena de Preso na Escuridão temos um Cesar que corre por uma Madrid de ruas esvaziadas, sem o som de carros ou o agito de pessoas que se deslocam para os destinos. Logo depois, Cesar já dirige pela capital espanhola de trânsito ativo e cidadãos em seus trajetos e atividades. Essas cenas são “sintomas” do que o filme de Amenábar tem a oferecer e que aposta no duplo, na repetição, nas oposições e na máscara como alicerces.
Assim, no Cesar galã, bon vivant, indiferente, que recusa Nuria e se apaixona perdidamente por Sofia para o Cesar de rosto arruinado, que se sente rejeitado e desejoso do amor de Sofia, há a transição do sujeito apegado à aparência e às facilidades que a beleza e o dinheiro trazem (o narcisista é um colecionador, mas sempre em busca de novas aventuras) para o homem que tem que lidar com a imagem abominada constantemente refletida pelo espelho. Dois Cesares em uma narrativa intrincada, no entanto, faces da mesma moeda. Depois de recusar intimidades com as mulheres que se envolveu, Cesar se vê perseguindo Sofia após o acidente. Ela se esquiva, recusa-se a continuar do ponto em que pararam, da atração mútua e de um futuro amoroso anunciado. Neste ponto, tudo é contado pelo Cesar que está no hospital penal, alegando ser vítima de uma conspiração ou que tudo não passa de um pesadelo. O psiquiatra quer que ele se recorde do assassinato, do terrível ato que o encarcerou no hospital. Quem Cesar matou?
Antes da cirurgia de reconstrução de seu rosto, Cesar reencontra Sofia e eles começam a namorar. Tudo vai bem na vida do jovem, até que se estabelece uma desordem psíquica e ele começa a confundir Nuria e Sofia. Um novo mistério conduz a trama, apagando e criando vestígios das escolhas que Cesar tomou antes e depois do acidente.
O caos emocional em que vive Cesar, sem saber distinguir se está em um sonho ou se em uma realidade tortuosa, tem na máscara, na prótese facial, um símbolo dessa confusão. Ora a máscara esconde o seu constrangimento, a não aceitação de seu estado, ora é o suporte da fragmentação entre o desejo de reconhecer-se e a vontade de se esconder, eliminar-se. Mas “quem realmente sou” é a pergunta que a máscara impõe. Cesar acusa muitas vezes Sofia, uma atriz, de estar interpretando, já que o ator é aquele que finge emoções. Como saber o que é verdadeiro? Porém, quem é esse que duvida sem confrontar a sua própria identidade? Cesar é um Casanova que não deixa de ser interrogado pela sua conquista desprezada (Nuria) e pelo seu amor não realizado (Sofia). O conforto e a asseveração do prazer pelo consumo (por um homem egoísta e indiferente que conhece o calvário dos sentimentos quando se apaixona) dão à tônica de um pesadelo vindouro, no qual o que você é ou possui não ajudam na fuga do abismo em que a mente nos lança, afunda-nos.
Ecos de O Fantasma da Ópera e A Bela e Fera contribuem na elaboração de um roteiro que auxilia na fundamentação de imagens belas e desconcertantes, como a conversa no parque entre Cesar, com o rosto já desfigurado, e Sofia, com a maquiagem usual de mímico, que se desfaz com a chuva.
A direção de Alejandro Amenábar constrói com eficácia o suspense que carrega em seu enredo algumas inovações e abordagens ousadas. Passado e futuro presente dialogam e se confundem sem prejuízo à trama. Assim como a realidade e o sonho, que se aproximam a um ponto de quase ruptura da fronteira que os separam. Quanto à ficção científica, o gênero entra em jogo com a criogenia, que acaba por dimensionar o pesadelo, mas também esclarecer o estado mental de Cesar. A vida após a morte surge como solução (ou fuga) para as dores e para os defeitos, os acidentes e o que há de incurável na vida que transcorre e que o futuro pode corrigir.
A busca por Sofia é o cálice almejado para a redenção de Cesar da sua arrogância mas também sua afirmação. O filme de Amenábar retrata o vazio, os conflitos internos existentes em um tempo em que a aparência e o consumo são valores-ícones de uma contemporaneidade em que Narciso é espelho.
Os atores estão em sua melhor forma. Eduardo Noriega transmite com segurança a soberba e a angústia de Cesar. Penélope Cruz faz de Sofia uma mulher de inteligência refinada, mas de uma simplicidade extremamente cativante. Najwa Nimri entrega um desempenho melancólico e sensual.
Talvez o excesso de explicação na cena final da obra de Amenábar soe didático e revele o que deveria ficar para o nosso raciocínio e imaginação. Mas é um pequeno porém em uma produção repleta de reviravoltas bem arquitetadas e mensagens visuais instigantes, que desafia à lógica e nos apresenta questões éticas e metafísicas sem perder a condução narrativa.
O filme espanhol de 1997 antecedeu obras que tratam do limite entre a realidade e a experiência virtual, em que um aporte psicológico tem um papel essencial, assim como a confrontação das noções de espaço e tempo. Filmes como existenZ (1999), de David Cronenberg e Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese (que estabelece um diálogo com O Gabinete do Doutor Caligari [1919], de Robert Weine, um clássico do expressionismo alemão), para citar alguns.
Preso na Escuridão recebeu uma menção honrosa no Festival de Berlin e foi indicado a 10 categorias no Goya, o maior prêmio do cinema espanhol. Em 2001, o filme ganhou um remake: Vanilla Sky, comandado por Cameron Crowe, com Tom Cruise, Cameron Diaz e Penélope Cruz, repetindo a personagem do original, no elenco.