Terminar o processo de abolição: um manifesto de Rodivaldo Ribeiro
Terminar o processo de abolição: um manifesto de Rodivaldo Ribeiro, fundador e coeditor da revista Ruído Manifesto.
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O Brasil está mais próximo de sua hecatombe social como jamais esteve
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O abismo entre as classes se aprofundou, a hipocrisia não se sustenta mais e, pra piorar, ninguém sabe o que colocar no lugar para manter o quadro social
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A perspectiva que se avizinha, de convulsões sociais sem um direcionamento ou mesmo objetivo comum, vão fazer sangrar o Brasil da pior maneira possível
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Parece que ninguém sabe o que fazer para evitar, porque simplesmente ainda nem conseguiram entender o problema
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O problema do Brasil é terminar o processo de abolição. Só assinar uma lei dizendo que homens não podem mais ter propriedade sobre outros homens não resolveu nada, assim como dizer que todos são iguais perante a lei não substitui todo o outro sistema de leis feitas para separar pretos de brancos
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Porque os anos se passaram e camuflaram esse racismo colonialista de simples “desigualdade social e má distribuição de renda”
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Não é
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A lei áurea foi nada além de uma tentativa de evitar uma revolução semelhante à ocorrida no Haiti
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Porque os portugueses, cuzões, estavam se cagando de medo de Napoleão, que varria a Europa, e temia o fato de mesmo a toda poderosa belicamente França ter arrefecido lá
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Foi só para evitar isso que inventaram essa “abolição” aqui, mas mantiveram todos os privilégios dos brancos e ainda aumentaram e muito os maus tratos aos negros
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Destituídos de seu direito de propriedade, rapidinho arrumaram um jeito de nos invisibilizar, animalizar, nos proibindo de ter propriedades, de fazer negócios, de trabalhar, substituindo-nos gradativamente por europeus e nos mandando de volta para florestas de onde nos haviam tirado por 3 séculos (estamos falando de 1800 e tantos, lembra?)
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O Brasil adiou esta guerra civil por 519 anos
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Não sei por mais quanto tempo dá pra adiar
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E meu desespero é que um cenário de quadros mais horrorosos que os da África se desenhe por aqui
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Nossa sede por violência e ressentimentos de classe não conhece limites
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Mandamos à vala uma média de 120 mil pessoas de forma violenta todos os anos
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São 70 mil assassinados a tiros, pedradas, pauladas, enforcadas, linchadas
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62,5 mil só por armas de fogo — que boa parte dos brancos/ricos acham que é a solução, porque pressentem a serpente pronta no ovo que eles mesmos chocaram
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O restante dos mortos é chacinado no trânsito: quase 40 mil todo ano
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Veja como se comportam nesse mesmo trânsito brancos e pretos? Ninguém é capaz de seguir sequer três regras de trânsito simultaneamente
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E eu vejo isso como ninguém, porque não mudei de bairro, nem de atitude, nem de amigos, nem de personalidade conforme minha família conseguia a pouca ascensão social que conseguimos, à custa de muito sangue, suor e lágrimas
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Tantas e de tanta monta que minha capacidade literária sequer alcança o preâmbulo para fazê-lo entender como foi: uma guerra linda, épica, digna de todos os heróis gregos que tanto aprendi a amar ao longo da vida
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Só que não sou filho de Zeus, não sou branco, não brilho como o sol
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Portanto, não tenho força o suficiente para fazer os dois lados entenderem o que está acontecendo
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Não consigo fazer os pretos/pobres entenderem porque eles foram obsessivamente desinstrumentalizados de suas capacidades cognitivas pela fome, pela violência constante, pelas carências de toda ordem, pela invisibilização social, pelo enfeiamento estético forçado, pela negação constante e cotidiana de toda e qualquer habilidade intelectual de nossa parte
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De outra feita, me sinto completamente inábil e inapto a explicar a vocês, brancos/ricos, ou de melhor situação social, mas ainda donos/patrões, o que estiveram, estão e ainda estarão fazendo conosco e consigo mesmos
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Até que uma catástrofe como a separação em pelo menos dois países se dê
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E isso no melhor dos cenários
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Porque no pior reduzimos nossa população em cerca de 40%
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Mortos por nós mesmos
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Eu nunca quis fazer parte deste banho de sangue. E estou chorando todos os dias, pedindo a Deus – que dele me livre
Cuiabá, 24/10/2019
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(Imagens: Tabacaria [detalhe] e Regresso de um proprietário de Jean-Baptiste Debret)