Todo o resto do mar – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada à professora doutora e poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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Um ano se inaugura sempre com 365 dias para tentar entender muitos comos e porquês. Passar de um ano a outro, um ano pandêmico a outro, de um caos a outro, um apocalipse a outro, me faz pensar em como nossas travessias são antigas e que, enquanto esperamos uma vacina, três mães no município de Belford Roxo, no Rio de Janeiro, se perguntam onde estão seus filhos. Por isso, o primeiro texto possível para 2021 é um poema sobre os comos e os porquês e sobre a contradição de existir a partir de uma ideia distorcida e trágica do que é humanidade.
Todo o resto do mar
Não sei como
Passou pela minha cabeça
A possibilidade de aquela viagem
Nunca ter acontecido
Com ele
Que logo depois
Deixou seus genes
Na terra Brasil
E, em seguida, sem saber a língua
Entendeu o que devia fazer.
Pensei que se não tivesse acontecido o navio
E todo o resto do mar
Ele poderia ter chorado, sofrido,
Sido feliz ou não.
Podia ter dito filhos
Que seriam meus ancestrais ou não
Mas (no entanto) ele desembarcou vivo
E ganhou um nome
Que desconheço
Mas imagino qual tenha sido
E se uniu a uma mulher com novo nome também
E inseminou outras ainda
Por querer ou à força.
Tiveram filhos
De diversas formas espalhados
Pelo território tão irregularmente nomeado
Por fuga missão ou compra.
Conformados ou revoltados,
Esses filhos só existiram porque houve um navio
E houve um oceano atlântico
Que ainda há.
Não quero mais escrever sobre isso
E ainda assim escrevo
Porque pra mim é um mistério
Pensar que existiu esse homem
Que poderia ter morrido cedo ou tarde
Ter tido várias esposas
Ser sido rei ou servo
Mas que em vez disso foi embarcado
Com outras almas
Que chegaram desencarnadas.
Esse homem soube do quilombo
Soube da capoeira
Soube do ijexá
Soube dos filhos
E não soube dos netos.
Esse homem principalmente
Não soube de mim
E se esse acontecimento longínquo
Não tivesse se dado
Eu não seria nem mesmo uma ideia.