“Três Anúncios para um Crime” (2017)
Três Anúncios para um Crime. Direção: Martin McDonagh. País de Origem: Estados Unidos/ Reino Unido, 2017.
Na cena de abertura de Três Anúncios para um Crime, três outdoors caindo aos pedaços, em uma estrada semideserta, estão envoltos em uma neblina espessa. Para o que será assistido dali em diante, a composição traduz a decadência da América profunda, que ainda vive cercada e é limitada (no que concerne ao desenvolvimento de um processo histórico que permanece refém do conservadorismo e da barbárie) pelo racismo, misoginia, intolerância e violência (seja a criminal, a institucional ou das relações de poder).
Mildred Hayes (Frances McDormand, em atuação impressionante), uma mãe que passa pelo pesadelo de não saber quem estuprou e assassinou a sua filha, Angela (Kathryn Newton), aluga os outdoors que estão na entrada de sua cidade, a pequena e fictícia cidade de Ebbing, no Missouri (mais tarde, descobrimos que o espaço publicitário não é utilizado desde 1986, o que expande a sensação de abandono). O conteúdo dos outdoors é forte: revela a brutalidade do ato e cobra da polícia uma solução. Na verdade, escancara a ineficiência dos agentes da Lei e deixa em evidência o xerife Willoughby (Woody Harrelson). A decisão de Mildred coloca a comunidade de Ebbing contra ela. Um padre chega a dizer que todos solidarizam com a busca por justiça empreendida por Mildred, mas que ninguém apoio a afronta direcionada ao xerife. Para complicar a situação, Willoughby tem câncer no pâncreas em estado grave. A ira da cidade é traduzida pelo policial Jason Dixon (Sam Rockwell), um racista (há sempre uma personagem que, na presença de Dixon, faz menção à tortura de homens e crianças negras), intolerante e incompetente, que tem uma relação de dependência emocional com a mãe. Dixon entende o processo como uma questão pessoal, já que pesa contra a polícia as acusações de ineficiência e negligência.
Este é o ambiente em que se desencadeia a trama de Três Anúncios Para um Crime, que amealhou os prêmios de Melhor Atriz, para McDormand, e Ator Coadjuvante, para Rockwell, no Oscar 2018. O filme é o retrato (ou deseja ser – ainda que possa ser percebido um tom farsesco) de uma América em uma encruzilhada. Em conflito estão o apego a um modo de vida em que o patriarcado arroga domínio sobre as relações e o segregacionismo racial dá seus últimos respiros e uma mudança na estrutura social, na qual hierarquias “naturalizadas” são contestadas e as vozes de comando ganham novas modulações.
Mildred é uma dessas mulheres corajosas que se coloca deliberadamente em posição de enfrentamento do status quo. O poder institucional de homens – a força policial – e o jugo do patriarcado – Hayes teve (tem) um relacionamento abusivo com o ex marido, de quem sofreu violência doméstica – são obstáculos para alcançar os seus objetivos: a apresentação e punição do responsável pelo crime.
O ódio e a dor de uma mãe são vivenciados por todos, já que se torna alvo da mídia. Na sociedade do espetáculo, o sofrimento – seja com a fúria, seja com o perdão como força-motriz – surge como combustível para atiçar a audiência. O que se quer é a indignação ou a solidariedade imediata. E em uma cidade em ruína, uma situação-limite transforma-se em algo capaz de exibir o que está para além da superfície de uma comunidade ordeira ou se apresenta como sopro de esperança para fugir da hipocrisia que mantém tudo na mediocridade.
Três Anúncios para um Crime equilibra de modo eficaz um drama pungente com um suspense policial que não dispensa situações que beiram ao surreal. A crueza e humor mórbido tão caros aos irmãos Coen, em obras como Fargo (1996) e Onde os Fracos Não Têm Vez (2007), percorrem a narrativa de Martin McDonagh, diretor dos elogiados Na Mira do Chefe (2008) e Sete Psicopatas e um Shih Tzu (2012). Esse conto de justiça, que a todo momento flerta com a vingança, não se torna um Desejo de Matar (1974), de Michael Winner (estrelado por Charles Bronson), já que a tragédia no longa-metragem de McDonagh não é catalisadora de uma catarse sangrenta, onde a face do mal é revelada e extirpada, mas um estudo de personagens.
Em primeiro plano, estão as consequências do crime e não o crime em si, já que o filme não se envereda pela seara da investigação e resolução. Sete meses se passam para que Mildred comece a agir de forma mais extremada, recorrendo aos outdoors, para que o crime não caia no esquecimento. Tempo suficiente para que a polícia dê conta de um crime atroz? Tempo suficiente para que Mildred expurgue a culpa que a corrói pelas últimas palavras dirigidas à filha?
O roteiro bem urdido de Martin McDonagh engendra as condições para que um elenco de grandes atores mostre do que é capaz. Frances McDormand entrega um Mildred implacável em sua decisão de obter justiça. Mildred é o retrato da coragem, da reação à inoperância de instituições doentes, porém suas certezas são cristalizadas, não há margem para erros em sua atitude (nem o filho caçula é poupado, já que a perseguição que sofre e o desejo de esquecer e seguir em frente são ignorados pela mãe). Woody Harrelson expõe a generosidade de um homem à beira da morte, que não quer impor o enfraquecimento físico que está por vir. Já Sam Rockwell faz um policial racista, brutal e de pouca inteligência. Este Dixon de Rockwell varia da irascibilidade, da intolerância, para a perplexidade e o constrangimento. É uma atuação que redime e ultrapassa os clichês incrustados na personagem.
Além do elenco, a fotografia de Ben Davis explora os sentimentos das personagens. Cores quentes e a natureza contrastam com a frieza e melancolia que acompanham os agentes dessa trama, que possibilita a Davis criar um espaço de imagens simples (com prevalência do uso de planos estáticos) que suportam as tensões que estão a ponto de eclodirem. Outro destaque é a trilha sonora de Carter Burwell, que investe na evocação do western, gerando as sensações de desafio e clausura, colaborando algumas vezes para que as expressões dos personagens e o silêncio sobressaíam sobre o texto agudo de McDonagh.
O panorama construído pelo cineasta britânico é de uma América de seres angustiados, inconformados e estagnados. Alguns personagens ficam presos a estereótipos, aproximando-se de uma ridicularização superficial. Talvez o maior problema seja a virada da personagem Dixon, fundamental para a leitura final de Três Anúncios para um Crime. Dixon de policial abusivo à personagem em busca de redenção, após descer ao inferno, apenas com uma carta que revela/reafirma que há bondade nele e uma ou duas visões do troglodita que é, resulta um tanto inverossímil. Um prejuízo? Um mal menor? Uma conclusão duvidosa – que também alude aos faroestes. Duas personagens, Hayes e Dixon que partem para uma missão, levando consigo suas dores e dúvidas, procurando no caminho suas certezas.