Três contos de Armando Martinelli
Armando Martinelli nasceu em São José dos Campos (SP). Jornalista, tem duas grandes paixões, a escrita, principalmente poesias e contos, e o cinema, com roteiros e produções de documentários. Publicou em algumas coletâneas e seu primeiro livro de poemas, Recital das Reticências, saiu em 2018 pela editora Urutau. Mestrando em Divulgação Científica e Cultural pelo Labjor (IEL) na Unicamp, quando não está recluso em seus escritos, pode ser encontrado em alguma atividade cultural na cidade de Campinas (SP), onde vive desde a infância.
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Um beijo
Ainda atordoado pelas estripulias alcoólicas da madrugada, prepara o café bem forte e come dois pedaços de torta amanhecidos. O apartamento era puro silêncio, apenas os restos da noitada faziam companhia. Na mesa de centro identifica as bitucas do Paulo geometricamente deixadas no cinzeiro. Tão logo embriagado, surgia a mania de criar arte com as sobras dos guardanapos, fósforos, ontem, as guimbas. Deixa-se levar um pouco na instalação, como a procurar sentido em meio às lembranças noturnas.
– Antônio, cadê o CD do Lou Reed?
– Já vai começar com o saudosismo, Paulo?
– É foda aguentar alguns papos por aqui, preciso de oxigênio. Nada como a trilogia boa música, puro malte e meu velho palheiro. Só assim para encarar essas reuniões marcadas por corriqueiras frustrações repetidas.
– Pelo jeito você já passou da dose. Dá uma maneirada, por favor.
– Me deixa em paz. Você sabe que eu apenas me isolo um pouco mais.
Enquanto recolhe migalhas esparramadas no tapete encontra um brinco de prata, pequena coruja pousada em lua crescente, que o faz voar até a orelha de Malu, recém-chegada à metrópole. Naquele cantinho de sofá, ladeada pelos animais sedentos, desfilou sorrisos tímidos entre várias cruzadas de pernas. Não demorou a ser cortejada por um dos músicos do andar de cima. O som ao vivo seguiu na sinfonia prazerosa até altas horas. Um grito no meio da rua o retorna à realidade, passando a agrupar as garrafas vazias e uma pífia tentativa de fazer divisões per capita àquela altura da ressaca. Confirma, novamente, seu desgosto pela matemática.
Beto chegou encabulado, sentou-se próximo a varanda e pegou uma cerveja. Convidei-o a conhecer os cômodos e apresentá-lo aos amigos, atitude que Paulo com certeza não teria. Durante o caminhar deixou nítido seu apreço pelos livros na estante e puxou “A crônica do pássaro de corda”, de Haruki Murakami.
– Antônio, puxa, procuro por esse livro há um tempão.
– Eu adoro o Murakami.
– Leva emprestado, depois quando terminar me ligue para conversarmos.
– Paulo, me diz uma coisa.
– O que? Você não vai me deixar sossegado mesmo?
– O teu primo Beto é aquele que visitamos quando era criança, em Santos?
– Ele mesmo, dá para acreditar?
– Como ele cresceu. Homem feito já.
Termina de recolher os copos e petiscos enquanto Paulo segue a dormir no quarto do casal. Pega mais uma xícara de café e senta-se para descansar. Só não mexe em um cálice de vinho que resplandece com o fio de sol, isolado penetra em minúscula fresta a dourar o sombrio ambiente. A luz ressalta um lábio demarcado na taça.
Tenta recordar de quem poderia ser aquela boca.
Contenta-se em pensar que havia um beijo para si.
*
Novo mundo
Você toma algumas doses e mergulha, novamente, em recordações oscilantes. Ora ela estava nua, consumindo o centro viril de sua libido, ora era fúria, impulso inseguro, descabido.
Vê a manhã chegar e com ela os resmungos sobre o pássaro morto na cozinha. Você se coloca a examinar o local em detalhes, verifica o que poderia ter acontecido com a pequena criatura, quase uma gosma esverdeada àquela altura. Pensa em vestir o traje mas recorda-se, está de licença, desliga o celular, evita qualquer possível contato, não aguenta mais receber consolos.
Recolhe energia para arrumar a pia, analisa as possíveis razões do gotejar noturno. Não encontra. Já não sabe se o vazamento realmente procede ou se a insônia cria enredos. Você se assusta, afinal teria matado a ave? Sobe ao telhado, não encontra ninho, não encontra qualquer vestígio. Contenta-se com a janela aberta, voo único, desajeitado, derradeiro à sola do sapato em deslize na escuridão. Pensa no gato da vizinha, algoz visitante, espécie de morador de todas as casas da redondeza. Quem sabe não teria vindo degustar sua vítima em abrigo praticamente intocado nos últimos dias?
Você toma algumas doses e mergulha, novamente, em recordações oscilantes. Ora era marujo a desfilar equilíbrio e sabedoria, ora era intruso, refém do pó da cronometrada euforia.
Não suporta mais o tema, dá socos na mesa, tenta cantarolar uma antiga marcha de carnaval. Engasga em rimas pobres, na troca de olhares com a morena siliconada, na vontade de consumi-la com a ponta da língua, esconderijo perfeito da dor.
Derruba a garrafa no chão, arruma briga com o garçom.
Desmaia.
Acorda na calçada em frente ao boteco com o estrondo da porta de ferro a ser fechada. Reergue-se aos cambaleios, reclama de maus tratos, grita que a espelunca não o veria jamais. Nem ouve gargalhadas ecoarem em reconhecimento a repetida anedota.
Despeja lágrimas, filtra mágoas, reza seus fantasmas, só assim reunia forças para voltar ao lar. Dessa vez se rende a inercia. Olha ao relógio, senta na sarjeta e procura outros ângulos. Até ameaça refutar as lamúrias, em vão. Enxerga a farda do oficial a crucificar sua conduta, sente o odor, a viscosidade do sangue dela impregnado em seu corpo. Relembra a pancada, os três giros do universo, a caravana de sirenes antecipando o silêncio sem fim.
Você toma algumas doses e mergulha, novamente, em recordações oscilantes. Ora era delírio na correnteza selvagem do destino, ora eram cúmplices alucinados de uma carência comunhão.
Procura se recompor, tenta correr, tropeça nos próprios medos.
Deita sob as estrelas.
Você se cobre com a folha de jornal vagante. Lê a notícia sobre possíveis sinais de vida na lua de Júpiter.
Avista o novo mundo.
Para de girar.
*
Pavão misterioso
O corpo já não respondia como outrora, as dores proliferavam, impiedosas invasoras a sinalizarem marcas do tempo. Passeava tranquilamente entre logradouros conhecidos, gostava de readequar a paisagem conforme os enquadramentos da lente esquerda de seus óculos, a direita era só enfeite, visão desfeita por doença hereditária. Ficar órfão na visão tornou-o ainda mais seletivo, como se não quisesse perder energias com qualquer cenário, com retóricas desgastadas.
Seguia sua trilha matinal para aliviar o espírito e buscar ar puro quando tropeçou em pedra solta na calçada e avistou o fato. O que fazia aquele pavão no coreto central da praça? Pensou em alguma maldade. Vai saber consideraram sua beleza ofensiva, espécie de pássaro exibicionista, excesso de cores a não agradar a retidão dos “novos tempos”. Do ser humano não duvidava nada.
Aproximou-se em esquivo, custava a se desfazer das armadilhas do pensar, achava que a qualquer momento saltariam gozadores escondidos a lhe chacotearem. Nada. No momento em que estava prestes a abrir a portinha de entrada olhou em volta e parecia que a praça havia sido acometida por uma praga, toque de recolher, ouvia apenas o vento soprar o pó das estátuas. Reparou que o pássaro se encolhera e apenas neste instante deu-se conta do que afinal poderia fazer. Libertá-lo e sair correndo, ligar para os bombeiros? Quando já se convencia pelo recuo, um menino magrinho, descalço, perto dos dez anos, saiu de trás de uns arbustos e gritou.
– Ei, moço, deixe minha nave aí, já estou de partida.
Balançou a cabeça algumas vezes. Será que finalmente teria confirmado a presença dos extraterrestres? Mas, ET fantasiado de criança? Sem conseguir manifestar alguma reação, observou o rapazinho entrar no recinto, montar no pavão e sair voando. Do parapeito permitiu-se apenas contemplar, navegar a vista até perder-se em indefinido ponto de luz. Nesse momento, viu-se cercado pelas pessoas novamente.
Um guarda apontou-lhe o dedo e, mesmo de longe, chamou sua atenção.
– Vamos, vamos, vamos, coreto não é local de vadiagem. Desce daí e se manda antes que eu perca a paciência!
Sentiu uma nova lufada, olhou ao céu e lamentou não ter o seu pavão. Só queria voar para bem longe.
(Foto: Fernando S. Ribeiro).
Marcela Fernandes
Realidades, sentimentos, lembranças, imagens. pra quantos lugares me levam os textos… dentro e fora de mim.
Magia é também, através das palavras, transportar pessoas.