Três contos de Barbara Leite Matias
Barbara Leite Matias é atriz, dramaturga, poeta, performer e professora de teatro. Mestra em Teatro pela Universidade Federal de Uberlândia/UFU. Licenciada em Teatro pela Universidade Regional do Cariri/URCA. É coordenadora pedagógica da Escola Carpintaria da Cena – Formação Livre em Teatro e Tradição, organizado pela Casa Ninho e Grupo Ninho de Teatro, Crato, CE. Tem atuado na construção de dramaturgias para teatro, produção de poemas e manifestos, entre elas, Cardinal, Amarelo, Hysteria, (In) fluxo, Carcará e a série Poesias Debochadas e Pode ser uma poema.
***
Fita lilás
Quem disse que a gente nasce só uma vez? Mentiu. Naquela manhã fria que era rara em sua cidade, Margarida amarrou uma fita no braço esquerdo. Uma fita lilás que dormiu no teto de sua casa com o intuito de ser benzida pela lua nova.
Ao amarrar a fita no pulso esquerdo enquanto o coração batia forte, em frente ao pé de goiaba que tinha várias abelhas se deliciando daqueles frutos, fincou um pacto consigo, quero nascer todo dia, repetiu em alto som sete vezes, enquanto isso, as abelhas gozavam no cerne da goiaba.
Naquele instante renascia com a lua, as goiabas, abelhas e a terra vermelha que ali pisava. Naquele instante entendeu que não seria fácil mas que estaria pronta pra atravessar com as fêmeas assim, como as abelhas que se misturava aos caroços da goiabas rosadas. Retornou a casa, abraçou a mãe, as irmãs e a vô, que acabara de passar café com rapadura. Sorriram sem gargalhar como a lua que logo mais retornaria pra visitá-las.
– Tome um cafezinho pra acordar, disse a vó.
– Pensei, nascemos agora.
*
Assinale com X sua cor: Branco, pardo ou negro?
Assinale com X sua cor: Branco, pardo ou negro?
Respondi, nenhuma. Todos tomaram um susto mas preferiram não comentar sobre. Estava na sétima série, àquele era o segundo ano estudando na cidade. Eu não sei, não fui eu que respondi aquilo afinal, tinha muito medo da professora de português que fazia questão de falar em alto tom que eu era a única aluna que falava e escrevia errado, como um aluno da quinta série. Era assim que ela me apresentava. Naquele dia, fui ousada, como disse a diretora que me fez passar uma hora e meia de joelhos no milho pra manter o bico fechado e, mais uma e meia nas pedrinhas pra parar de achar que pedra é santa.
Eu ali naquela sala de parede desbotada, de um lado a imagem do prefeito da cidade e do outro nossa senhora Fátima, eu tive medo da face daquele prefeito que desde que me entendi por gente seu sobrenome governava aquela cidade, a santa estava triste quase olhando pra baixo, também não consegui confiar nela. Fiquei ali, não sentia mais pedra, milhos ou dor. Estava perplexa, calma e observando aquelas duas imagens que não me causavam nenhuma empatia. Quando não conseguia mais olhar aquelas duas imagens, naturalmente meus olhos foram fechando como o ápice de uma meditação, não desciam lagrimas, nada daquilo fazia sentido, essa era minha única razão.
Ainda de olhos fechados, lembrei de uma história que sempre que minha mãe conta meu pai se envergonha, pensei em contar pra diretora talvez, ela me ajudasse e até me pedisse desculpas por tudo aquilo. Então, a partir dessa ideia, comecei a ensaiar em voz alta.
Minha mãe, quando conheceu pela primeira vez a casa da mãe do meu pai, estava com a sua prima Stella que morava na capital e estava de férias na casa da minha vó materna Alice.
Quando as primas chegaram na casa da minha vó Zezinha tomaram um susto, aquela terra vermelha sujara até as meias das menina mas, o grude do pé era o de menos, as moças colocaram as duas mãos no rosto de frente da porta da frente que estava toda escancarada, como de costume. Stela gritou, gritou desesperada. Meus tios, Ananias, Cauã e Caué saíram correndo assustados, a beleza daquelas duas moças parecia a dos homens de botas que há muito tempo aparecera naquelas terras, que todo mundo conta mais ninguém confessa enquanto um fato verdadeiro. Meu pai Moacir ficou sem jeito e correu pra dentro de casa, colocou sua melhor roupa, que por sinal era a mesma que ele usou na festa do município em que conheceu minha mãe, quando voltou pra atende-las compreendeu que o susto das moças era porque os rapazotes estavam trajando calçolas e aquilo não era normal na cidade, a menos que fosse na praia.
Meu pai recepcionou as moças, pediu que elas adentrassem, a casa era tão vermelha por dentro quanto a terra elas vinham pisando depois que desceram do fusca amarelo. As meninas de vestidos coloridos, sapatos e meias até os joelhos não sabiam como sentar-se, como conversar naquele lugar, com aquelas pessoas. Talvez minha mãe por interesse nos olhos negros e expressivos do meu pai ou por morar numa cidade menor aos poucos foi se permitindo e até achou cheia de graça a casa, observava lentamente, aquelas paredes eram da mesma tonalidade do chão, achou bonito meu tio Ananias catando piolho na minha tia mais nova. Buscava a cada segunda encontrar os olhos do meu pai que estava um pouco assustado, nunca conhecera uma moça tão bem vestida feito ela, sem contar que quando a conheceu era a terceira vez que ele pisava na cidade.
Alguns cheiros começaram a incendiar aquele lugar, era minha tia Janaina torrando arroz pro almoço. Foi até a sala, limpou duas cadeiras e pediu para as moças sentar. Menos de uma hora das moças ali, minha vó chegou do enterro de sua vó Nyara. Ela chorava muito e repetia que a vó dela sempre que dormia falava umas palavras estranhas, que ninguém sabia o significado, exceto seus irmãos e seus pais mais que evitavam conversar sobre aquilo e, se fossem pedir uma explicação a vó a mesma sempre respondia que a palavra era uma honra e é preciso entender o poder de cada uma.
Agora, perante esse mundo de terra avermelhada, minha mãe sabia que aquele povo que ela estava conhecendo eles tinham algo a mais, uma coisa que talvez a prima Stela nunca compreenderia, pareciam donos da mata pela forma como dominava até o vento. Continuaram a conversa e daqui a pouco a tia Janaina chamou todos pra almoçar, a Stella não aceitou, disse que não come fora de casa. Não insistiram até porque a casa da Stella levaria pelo menos umas dezessete horas pra chegar. Quando mainha colocou a primeira colherada na boca, aquele arroz torado com óleo de coco babaçu que até agora enche minha boca de água, ela olhou pro meu pai e em silêncio pediu em casamento. Os dois riram e ela perguntou se depois que comesse aquela pratada ela podia repeti. Todos responderam juntos, sim.
Uma mão suada, batia nas minhas costas, não era pra me convidar pro almoço. Eu continuava na sala desbotada da direção, de frente das duas imagens.
Tomei um susto, quase me engasguei e não era de arroz torrado no óleo de coco babaçu. A diretora olhou na minha testa e falou: Mocinha da sétima série, acabou seu castigo.
Eu continuei ali e ela gritava cada vez mais alto, acabou seu castigo, você está livre, livre.
Não vi motivos pra comemorar.
Pegou no meu braço direito, sinto até agora seus anéis e seus dois relógios tocando minha pele, os milhos e as pedras ainda colados nos meus joelhos.
Falei, agora posso responder?
Ela me disse, já decidimos. Você é parda.
Pensei, ela não entendeu nada assim, como a prima Stella.
Sai da sala e as imagens só aumentam assim como as escolas que continuam respondendo por nós.
Por favor, não me pergunte se sou branca , parda ou negra quando você nem se quer me dar a oportunidade de expressar minha identidade que todo os dias é apagada, queimada, calada por imagens de governantes que sempre assinaram na alternativa, branco.
*
Aniversario de Lúcia
Na casa azul era aniversário de Lúcia, os pais organizaram uma grande festa, convidaram todas as crianças da vizinhança e a turma escolar dos três filhos, Lúcio gêmeo com a aniversariante e Lucas o mais velho. As pessoas começaram a chegar para a festa ás dezesseis horas daquele sábado para a celebração. O quarto de cima, conhecido como Soto ficou reservado para as crianças se divertirem, os pais convidaram o grupo de teatro mais importante da cidade para representar personagens da mídia afim, de que as crianças pudessem sentir-se mais alegres no evento.
No Soto as crianças se divertiam a beça. O irmão mais velho sugeriu, vamos brincar de esconde-esconde, todos concordaram com a ideia do Lucas e a aniversariante ganhou de presente ser a procuradora/detetive, aquela que descobriria o esconderijo dos colegas, era dezoito horas e já tinham comido o bastante para ter energia para as brincadeiras que viriam experimentar, bem, apagam-se as luzes e ela conta cada número a partir da sua respiração. A cada numero naquele imenso escuro a respiração se aprofundava, enquanto isso, todos procuram os melhores esconderijos, passa dos noventas, duzentos e nada de alguém assoviar porque alguém ficou de assoviar, essa é a regra principal para a detetive começar a procura.
Desesperada, mesmo sem o consentimento dos demais, Lúcia sai a procura, tenta acender a luz mas não teve sucesso, grita e o silencio continua. Silêncio. Vai a porta mais ela está travada, não dá pra sair do soto e mais uma vez, silêncio. O desespero aumenta, quando em meio ao silêncio aparecem barulhos estranhos que aparenta corpos caindo no chão, em alguns momento um liquida quente pinga em seu corpo, sem ar a garota quase não consegue gritar, mais ainda assim, insiste em abrir a porta. Nesse momento, a garota tem medo de ser morta, até então, nunca havia pensado em morrer mas ali viu a morte, ela era careca e usava salto alto.
Começou a cantar baixinho mais não se acalmou, tudo era bagunça, sons extracotidianos e cheiros desconhecidos e suaves. Os barulhos continuam e então, lembrou-se de uma história que a vó costuma contar, disse que podemos imitar o que queremos, se quer paz, invente a paz.
– Se quero alegria fico bem!
Então, a garota teve a ideia de reproduzir aqueles barulhos porém, além dos barulhos agora, aparecera as pisada. Desesperada grita como se fosse o ultimo grito e cai tremendo no chão, aos poucos as luzes se acendem, os irmãos tentam acalmá-la, porém eles estão no mesmo estado dele, inclusive um deles vomita nesse momento.
Lúcio está mais calmo e, corre até a gaveta pega a lanterna dos pais porque o espaço era muito longo e nem todas as luzes acenderam, o garoto procura os amigos porque tinha pelo menos mais doze crianças e nenhuma está ali, somente os três como todos os dias mais aquele dia era especial e até então, estavam todos os visitantes ali. O desespero aumenta. Lúcia achava que era os irmãos com os amiguinho pra assustá-la mais eles juraram que não eram eles e cada um estava num canto diferente do espaço. Assustados, porém conscientes, desçem até a sala, os pais estão dormindo, adentram ao quarto e acorda-os, pois tinha a esperança de ter sido os artista com alguma peça assustadora. Os pais acordam ainda sonolentos e dizem;
– Lucia, filha volte a dormir, seu aniversário é só próximo mês, agora volte a dormir, por favor.