Três contos de Danilo Brandão
Danilo Brandão nasceu em São Paulo, em 1996, e mora em Londrina, interior do Paraná. É formado em Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Tem contos publicados em site e revistas literárias como Gueto, Lavoura e Diversos e Afins.
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Sangue
Papai estava lá dentro e mamãe gritava na sala e vovô estava na cozinha com Dora. Um caixão enorme e parecia pesado. Como é que foi isto? Ele estava se empanturrando de macarronada. O colarinho sujo de molho bolonhesa. Subiu as escadas e, no quarto, tirou as botas. Resmungou qualquer bobagem pra mamãe. Ela não deu ouvidos. Era uma mosca. Uma mosca o incomodava e ele gritava por inseticida. Mas mamãe não ligou. Como de costume.
Daí ele foi pro bar. Ficar mais cheio de si. Jogar bilhar com os amigos. Assobiar para qualquer mulher que passasse na calçada e tomar cachaça. Da boa, que rasga a goela, dizia.
Não voltou nunca mais.
Está aqui dentro. Encaixotado.
Mamãe não para de chorar. O telefone tocou. Ela deixou cair no chão. Acho que pelo choque, pelo susto. Nunca mais parou. Ela chora e grita. Aquilo era realmente irritante. Papai sempre odiava quando ela começava o show. Agora mamãe chorava bem em seus ouvidos. Ele deve estar se revirando ali.
Coitado de papai. Preso no próprio caixão.
Mamãe disse para eu me despedir. Fui depois de Otávio, meu primo. Quando estava a dois passos da escada, Otávio me cutucou e apontou para as coxas de Dora. Ela limpava a baba de vovô. Pai de meu pai. Eu ri das coxas de Dora. Ela usava umas meias enormes. Cor de bosta. As meias de Dora ultrapassavam suas coxas, invadiam suas partes. Estavam muito rasgadas. Eram famosas àquelas meias. Papai as adorava. Uma vez, o peguei cheirando elas com força no banheiro. Acho que Dora usava suas meias em homenagem a papai. Dora era boa e papai a amava. Mas mamãe sempre a chamava de puta.
Puta.
Era como mamãe chamava Ana também. Ana é uma puta e descarada, dizia enquanto chorava. Numa sexta, à tarde, Ana se foi. Mamãe a chutou pra fora. Papai ficou furioso. Foi ao bar. Era sexta. Mamãe chorou até domingo. Na segunda, ele estava se empanturrando de macarrão e nunca mais se falou em Ana. Era a terceira.
Ai veio Dora ou o vovô. Não sei. Dora e vovô chegaram meio juntos na casa. O cérebro dele parou. Quase isso. Ficou todo troncho, o vovô. E meu pai o odiava, mas mamãe bateu o pé. Ai ele ficou lá. Vovô gostava da cozinha. Ou pelo menos era lá que o deixavam. Bem no canto, em sua cadeira de rodas. Ele cheirava muito mal e sempre gritava coisas sem sentido. AAAAAahhhhh, OOOOOoooooh, EEEEEEEEEEeeeeeeeeeee, IIIiiiiiiiiii, OOOOOOOooo, AAAAAAAaaaaaa. E aquilo me assustava, no começo.
Papai ficou mais bravo ainda porque Dora era de vovô. Tinha se tornado dele. Estava sempre trocando suas fraldas ou lhe dando comida. Ai eles começaram a disputar Dora. Ombro a ombro. Pau a pau. Como nos velhos tempos. Meu pai gritava quando já estava bêbado demais. Um dia, papai não aguentou e deu um soco em vovô. Ele só caiu, aos poucos, em frames. Foi um baita cruzado. Bem no queixo do velho. Era puro ódio, aqueles dois. Vovô só movia os olhos. Mas, ainda assim, olhava como quem preferia morrer ao deixar esse mundo antes de meu papai. Ele ia ficar lá, em sua cozinha. Mesmo com vovô imóvel, eles brigavam, todos os dias. Desconexo, papai falava de uma prostituta do Rio de Janeiro e de um trabalho de guardador de carros e de uma faculdade de Direito trancada e de uma carreira de motorista arruinada por um acidente.
Filhos da puta.
Ficava com dó deles.
Dora nada fazia e muito menos mamãe, que estava sempre no trabalho.
Era estranho pensar que ele nunca mais voltaria. Alguém colocou um retrato dele em cima de seu caixão. Quem foi que colocou essa merda? Deve ter sido minha tia. Estava engraçado, pelo menos. Parecia bem feliz e estava com o colarinho manchado. Um sorriso meio achatado e vestia um macacão azul.
Todo mundo diz que pareço muito com papai. Odeio quando falam isso. Não queria. Acho seu nariz largo demais. Fora que me parece rechonchudo, sempre com a boca cheia. A foto me dá vontade de chorar. Pelo vidro do teto – essas loucuras de mamãe – percebo que sim, pareço com ele. O riso achatado. Nariz igual.
Choro.
Agora sou eu e mamãe.
Papai. Nunca mais o verei. Papai está morto. Morte, é isso. Deve estar sonhando com as meias de Dora agora. Vovô sorri.
*
Torta de frango
Aquele cheiro era foda. Ela fazia uma torta de frango que queimava na parte de baixo. Toda sexta. Era religião. As pessoas são, em geral, um agridoce entre engraçadas e estranhas. Às seis, começava. Eu estava na primeira tragada da noite. Conseguia distinguir sua silhueta através da cortina florida. Era com graça. Com graça que ela se mexia no centro da cozinha. O centro do mundo.
Às oito. Era em ponto. Ele entrava a passos lentos e se jogava no sofá. Pra tomar coragem. Os anos pesam como cadáver apodrecido nas costas dos casais. Seu tórax explodia uma. Duas. Três. Pela janela, eu percebia seu dorso corpulento. Na cozinha, ela fingia. Gostava que demorasse pra aparecer. Emulava uma preocupação com a crosta. A crosta da torta. Ela sempre tava lá.
Às nove, às sextas, eles iam para o quarto. Ali, eu imaginava. Uma, duas, três tragadas. Quatro doses. A torta já esfriava na mesa de jantar e me espancava o rosto com seu cheiro. Nove e meia.
Saíam meio que entediados. Com a calça desabotoada e o vestido revelando parte das coxas pálidas. A torta se extinguia. O silêncio tomava conta daquela cozinha de uma forma arrasadora. Era fadiga. Sexta. Casamento: não terás outros deuses diante de mim. Ele era o marido. Ela, esposa. Aquilo era surreal. Um ambiente todo contorcido e desfocado por cheiro de torta e instituições.
Eu estava sozinha. Sentia-me melhor que eles.
Meia noite. Eu jogava pra dentro o último pedaço de torta. Ela trazia em um pote de plástico todo manchado de molho. Chamava-me de ogra. Ria. Contava-me que ele gozou em dois minutos e apontava, de forma sincronizada, as sobrancelhas e os olhos para o teto. Toda sexta ela vinha. Tinha o riso pesado. Penava a aparecer. Seus dedos cheiravam a alecrim e ficava até às três. Ele pode acordar, dizia. Nunca acontecia. Mas era casamento. Pra me despedir eu empurrava seus dedos pra dentro de minha boca. Era alecrim.
Um dia lhe pedi pra ficar. Não ia acontecer, ele não ia acordar e por que ficar com um brocha que é viciado em torta de frango? Eu disse. Era uma merda. Um tédio. Não me respondia e olhava através da janela, através da cortina. Direto pra cozinha. A forma, vazia, ficava em cima da mesa.
No meio do breu do quarto, dois cristais brilhavam em sua face. Era linda, afinal. Estava cansada e aquilo era a vida. Nunca me respondeu.
Não ia rolar. Estava queimando de febre. Que voltasse na semana que vem, mas com o brocha e uma torta inteira só pra mim. Ele ronca, ela disse. Soltou seu riso pesado sob mim. Era dez.
Voltou. Não sexta. Terça. Ela. Ele. Mãe e pai. Eu no centro. Cobria meu cobertor com os cristais que saltavam de seus olhos. São muito amigas, seu marido explicou para os meus pais. Era choro e pena. Eu era a terra, afinal. Faltava-me apenas dois dias e o som de seu choro pesava mais ainda. Era foda.
Eu, que pequei, enfim, jejuei, descansei do meu amor. Sob os olhos do brocha e do lado da torta. Ela não esqueceu. Meu quarto cheirava a frango e alecrim quando me extingui.
*
Trinta anos
I
Não tinha um fio de cabelo. Careca. Nu. Por isso, deixava a janela aberta nos fins da tarde. Os ventos invadiam o seu entre orelhas com força. Era do vento e do frio que gostava.
Coloria. Oito horas. Aquilo era o seu mundo e podia dar cor pra tudo. Odiava parar. Só saía para o café. Às quatro. Seus amigos corriam para o computador. Jorravam o verde no sol. O preto virava albino. Riam. Quando ele voltava, não percebia. Nunca. Seguia o padrão dos exemplos.
II
Era infeliz.
Sua mãe acabara ao parir. Foi no parto. Os médicos não seguravam o sangramento. Seus amigos riam da história. Apontaram-lhe a cabeça e disseram que ela não havia suportado foi aquilo. O golpe em seu ventre foi duro demais. Uma puta cabeça de alfinete.
III
Tufo a tufo. Rarearam no topo. Duas semanas, laterais. Perdeu: mãe, cabelo, casa. Progressivo. Em ordem pra não assustar.
IV
Mês.
Encontrou um amigo. Desses que se encontra e pronto. Nem se vê. Foi morar com ele. Um cara de trinta anos. Exatos. Gastava seu tempo entre o trabalho, yoga e cocaína. O cara ficava na fissura a cada quinze dias. Chegava em casa. Ia para o sofá, só de cueca, e olhava pro nada. Meia hora lá. Começava a berrar. Havia achado suas unhas no sofá de novo. De novo. Com os olhos saltados na sua nudez, lhe perguntava porquê não tinha cabelo. Nenhum. Não respondia e deixava a nóia se acalmar.
V
Fim da tarde. A brisa no trabalho. Ia colorir e deixava toda a merda pra lá. Era meio automático seu caminho. Desviava das rachaduras e das bostas de cachorro. Pelas manhãs as brisas eram piores. Gélidas e fracas.
Ia.
VI
Não havia estudado até o final. Quinto ano. Fundamental. Os meninos o jogaram na lata de lixo. Estava recheada de cacos. Fim. Os vidros penetraram a derme. Bem no fundo. Dor. Era a dor mais profunda que já havia sentido. A menina de pernas roliças escarrou bem na sua orelha. Misto de saliva e catarro. Dentro de si. Escorregava pelo pescoço. Fio taludo. Verde-água. Sentiu uma mão ossuda, gigantesca, nas têmporas. Era do menino mais magro. Dono do batalhão. Seu dente voou. Apenas leite, ficou lindo, brilhava no asfalto. O sangue já lhe tomara o rosto e não via mais nada. Confuso. Por último, um jato quente passeou por seus olhos. Nariz. Boca. Era ácido e vinha rápido. Deu tempo de imaginar que era da menina.
VII
Apagou.
Sentava na cadeira e pintava mais um pouco. Sempre começava pela banda direita.
VIII
Não se lembrava muito bem como caíra ali. Cadeira e mouse. Ombros projetados para o monitor e pálpebras pesadas. Lembrara-se, somente, que as veias cerebrais entupiram. Ela caiu. Era sua vó. Órfão de novo.
IX
No outro dia, foi até o banco. Sacou a grana. Foi até a banca. Folha classificados. (11) 96200 – 6169.
Foi.
X
Na entrevista, lhe perguntaram quantas punhetas batia por dia e se gostava de colorir. Pacote Adobe completo em quase todos os programas e duas. Deve ter sido o único a ir.
Entrou. Não se sabe o porquê.
XI
Eram rolas de 20 centímetros. Uma entrelaçada na outra. Bucetas de todas as cores. Ele as escolhia. Começava pela banda. Direita. Homem ou mulher. Quando estava repleta de porra, gostava mais. Bem no seio da face da índia. Era sua preferida. Linda, de um branco encardido, quase amarelo, escorrendo pelo lábio dela.
XII
Nos primeiros meses que ela aparecia, nunca terminava. Jorrava no terceiro boxe do banheiro do trabalho. Em casa, a cueca na bacia de roupa suja, seu amigo louco não aguentava. Mandava ir se fuder. Não tinha tampa, a bacia. A sala cheirava a porra seca. Aquilo o lembrava da índia e de seu rosto. Todo sujo. Gozava de novo.
XIII
Três por dia.
Foram meses. Do nada, ela sumiu. O filha da puta de óculos a tirou. Deu-lhe uma rola branquela e passagens pra Europa. Segurou o choro até o fim. O sol saiu amarelo naquele dia e as demais cores pareciam no lugar. A porta fechou. Era o seu quarto. Desabou. Cobriu-lhe por três dias e não foi trabalhar. Sabia que a porra do branquelo já estava na cara da índia. Pronta pra ele colorir. Era diferente dos outros. Ele havia ganhado.
XIV
Desistiu.
Foi demitido. O cara de óculos lhe deu uma foto na saída. Envelope pardo. A foto da índia. A de verdade. A sua índia. Guardou no bolso. O rosto estava limpo.
XV
Fazia trinta ali. Hoje. Deu três suspiradas. Uma pra cada década. Jogou a foto da índia no sofá. Lembrou-se da mãe, da vó, dos cacos, do cuspe da menina, do trabalho perdido. Fazia trinta. A índia o olhava no sofá, ouviu um estrondo, seu amigo estava na fissura de novo. Pediu uma pizza pra comemorar.