Três contos de Monique Malcher
Monique Malcher é escritora, tem 30 anos, paraense. É antropóloga e doutoranda em Ciências Humanas na UFSC, pesquisando quadrinhos e literatura. Escreve desde os dez anos de idade, já lançou produções independentes como as zines: Trinstona (2018), E a gente nunca mais se viu (2019) e Mas nem peixe? (2019), aalém de manter uma newsletter que, em apenas três meses, ultrapassou 200 assinantes. Também atua como colagista, mesclando colagem digital e analógica. Até o início de 2020 estará tanto como colagista, pesquisadora e escritora em obras como: Flor de Gume (seu livro de estreia), Mulheres e Quadrinhos (Editora Skript e Minas Nerds), Queer e Quadrinhos (Editora Skript e Mina de HQ), Emília 100 (Editora Skript e Carol Pimentel), Zine Poça #1 e Zine Coletivo Declama Mulher.
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Beladona
A história era sobre um corpo de criança com o sofrimento de um demônio banido da sua liberdade de descobrir a direção. Satanás chorou por mim naquela noite, o amor era um sentimento estranho. Era coisa mascarada, um amor não amor, segui com aquele homem, meu pai no cartório. E o lençol sempre cobriu ou escondeu meu pavor? Fedia meu apodrecimento melancólico e a minha tentativa de amar o cativeiro em silêncio. Tudo era silêncio e eu pari palavras para aguentar. O big bang, com o bang no mudo. A criação de um terror instalado na minha mente por décadas.
Com dez anos, segurando o lençol, pensei em pular da janela. A capa do meu super-herói era o cobertor do meu próprio cadáver, esperando por uma família feliz. Eu tinha nome?
É primavera agora que escrevo, e penso nessas questões escondidas das flores. Só as beladonas sentem a frequência das letras de agora, de um sentimento de sempre. Na cama, somente eu, lutando com uma capa de colchão elástica. E quando três ou dois lados parecem sincronizados se desfaz um, dois, todos. O segredo é não tensionar tanto só um canto. Leva tempo. E aqui nessa cama quis encapar as feridas, mentir sobre os profundos, mas não tão profundos pensamentos.
Suas merdas sempre flutuando na borda, mas nos últimos dias, o mar me escreveu e chorou nas espumas. Delas veio a certeza de que o mar dos meus sofrimentos vai mais do que lustrar, mas lavar a madeira do seu caixão. Não há espaço para uma mulher viva contigo, essas caixas são para que se vá sozinho. Vou lhe banindo das gerações futuras e das tantas verdades que nem eu estarei aqui para aprender. Seu nome vai virar pó, e esse será o vômito da violência, não minha, mas sua. Crua, sem açúcar, mas de entupir veias. Vou aprender meu verdadeiro nome. Seus olhos vão explodir à luz das suas grotescas cagadas. Seus gritos hierárquicos vão transbordar seus buracos com fezes, a sua única epistemologia, formação e obra-prima. Papai.
Carrego cadáveres nas costas, a história me pede justiça por eles. E sei que você matou as mulheres do meu universo, algumas se reconstruíram, outras se entregaram e outras mudaram a vida, mas o medo ficou. Carrego também o meu suicídio, tão nova, nas suas mãos. A morte a cada surra e estratégia psicológica sua. A teia era meu travesseiro, moscando sonhos, mesmo de morte anunciada. Aprendi a talhar a caixa que era para mim e agora lhe espera. Tive tanta sede do apodrecimento do seu corpo, porque da alma – se lhe couber uma – já fede implacável. Meu ódio é placa de sangue.
A endometriose não é nada perto da dor das minhas paredes. Não és monstro, que seja feita justiça, és homem comum, que espanca, estupra, mata e diz que ama. Monstras somos nós, extraordinárias, visto que a monstruosidade é corpo diferente em movimento, feito de solidão. A monstra é linda e canta uma canção. A letra é dela dessa vez.
As mulheres monstruosas fizeram bruxarias no mar, deve ser por isso que chamam a luta de onda. Conchas trouxeram um poema que avisa. Monstras, animem-se, as que foram queimadas, seja por fogo ou por homem comum, voltarão. Quem foi queimada renascerá das cinzas. Lembre bem homem comum! Só as mulheres corcundas de carregarem tanta dor podem voltar, e voltam, todos os dias.
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Tira a minha roupa?
Gosto do inverno, mas tudo que gosto tem o poder de me tirar algo importante. Vou escolhendo com cuidado meus desejos, porque carrego o medo de perder. O frio me tira a dormida pelada. Durmo melhor sem roupa, em algum momento meu corpo precisa respirar como as plantas de apartamento, que se organizam apertadas na varanda. Caminhar nua em casa é sensual de assistir, não importa que corpo adulto seja, vejo sensualidade. Sei que em mim ela não reside, mesmo que eu queira.
Quando faço fotos minhas sei qual o lado é mais charmoso, conheço que tipo de fotografia erótica me deixa atraente, não só para quem vou mandar as fotos, mas para eu mesma. Quase todas as poses são gritos. Não é um acúmulo de egocentrismo, são todas as minhas tentativas de me aceitar.
Aceito. Gosto.
Algumas vezes só fico em dúvida se essas fotos pelada que carimbo com um sim capturam a mesma mulher que vejo quando olho para baixo no banho ou quando coço a xoxota enquanto vejo uma série romântica, que não posto na rede social.
Não é sobre os outros. é sobre eu mesma.
Odeio me deixar saber o quanto gosto de pensar em romance. Esse romance que falo mal, não por hipocrisia, mas porque sei que toda vez me joga da montanha mais alta. Sou obrigada a juntar minhas próprias vísceras e dizer opa, foi só um arranhão, tudo bem. Então, é melhor seguir assim, uma mulher editada. Para que aos poucos me ame, com cautela. Tem partes minhas que é difícil de amar. Quando não estão na internet parece que não existem ainda. Vou deixando emergirem aos poucos.
Respira. Inspira. Solta.
Hoje já posto fotos de corpo inteiro, na adolescência só postava fotos do rosto, apenas um lado para ser mais precisa. A foto de corpo inteiro que posto, agora que sou adulta, é filha de novecentas ninhadas de duas mil fotos. É o experimento genético que saiu quase perfeito depois da morte de um país de cobaias, que estão ali na grade da pasta /imagens para me lembrar de quem sou. Não sou nenhuma foto, mas uma versão aproximada do que sou são as presas na grade dentro da pasta… do celular e do meu medo de amar uma versão que acho estranha de mim. Talvez seja sobre os outros, mas eu digo que é sobre minha existência para não me sentir um peso para ninguém.
Postei uma foto nova, é linda, os seios à mostra, um pouco de bunda, não muita. A legenda deveria ser bata punheta para uma mulher morta. Ainda tem algo de morte dentro de mim, sorrio, tento todos os dias, mas ainda tem aquele cheiro de algodão na narina, um líquido podre escorrendo por trás de tudo. Tem um cheiro diferente depois que acabo de me masturbar. É tristeza com vazio. Lambi os dedos da última vez e o sabor era forte, de quem desistiu de dizer tudo. Tá tudo bem, não se preocupe – respondo no privado enquanto definho.
Gosto de dormir pelada porque é confortável, se eu morrer dormindo fica mais fácil o processo se tiver sem roupa. Nunca deixei muitas pessoas tirarem minha roupa, quando vou trepar com alguém sempre vou tirando logo tudo, é menos doloroso quando você entra debaixo do chuveiro de uma só vez. Não sei a sensação de alguém me vestir, não lembro de sentir alguém me vestindo quando era criança, a gente esquece as coisas boas. Penso todos os dias e peço para nunca sofrer um acidente de carro, porque não quero que ninguém tire minha roupa. O problema não é estar pelada. Se a única saída é tirarem minhas roupas, seja no prazer, no acidente ou na morte. quero que seja eu a pessoa a fazer isso.
Não tenho sensualidade quando caminho pela casa pelada,
tenho medo.
Isso sim,
não é sobre os outros,
é sobre minha pele descolando.
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Constelações e massas de modelar
Sentados frente a frente, encarando mais do que os olhos, fitando o momento. Estou de passagem pela cidade, férias e trabalho. Parto em breve. Reparo seu rosto estrelado de sinais, pontos de tamanhos variados, que tomam conta das suas maçãs e do nariz todo. Sardas. Uma constelação delas, estradas que eu vou passeando com a ponta dos meus dedos, tentando saber de onde você veio, se no seu rosto é ursa maior ou qualquer outra constelação que jamais meus pés dos olhos pisaram.
Gosto da ideia de tentar lhe redesenhar com o toque, que já havia sido de tantos outros e outras. Pessoas que agarraram minhas mãos e espremeram meus dedos como laranjas inúteis. Agora eu toco uma constelação com olhos que se fecham lentamente, como quem sente prazer ao provar chocolate pela primeira vez. Como era esse lugar que você flutuava sem me chamar para uma cervejinha? Qual o porquê da demora dos nossos olhos nos olhos dessa noite?
Busco sua mão. Aperto com força, solto devagar, torço para que perceba o que lhe pergunto: quer segurar minha mão mesmo? E segura, entrelaça os dedos, me tranquiliza sem precisar falar nada. No fundo estamos muito inseguros depois de tantas coisas ruins, como se fossemos mudas de pimenteiras esmagadas por coturnos enormes, que não pisam, mas marcham esfarelando nossos corações. Corações que costumam ter no relicário do pescoço a palavra esperança. Não esperamos mais nada ou esperamos algo de ruim, sempre. Enquanto você fala sobre seu lugar, argumenta sobre imigração e cita uma música que gosta… acaricio seu pescoço, admirando a pessoa que se tornou, faço sinal para o garçom com a cabeça.
Eu era uma moleca, tinha uns vinte anos, morava em uma kitnet que cabia um guarda-roupa rosa que ganhei e odiava, uma cama de casal conjugada mais dura que uma tábua, fogão, geladeira e um criado mudo. A gente bebeu umas cervejas, eu escrevia uns textos eróticos, que depois abandonei… você já fotografava, me prometeu que faria um retrato meu, não fez. Acabamos na cama da kitnet, sem sabermos quase nada um do outro. Era uma noite, como tantas outras que vieram na minha vida sexual, que eu ia esquecer, mas eu não consegui. Nem esquecer, nem transar.
Meu corpo era de uma outra mulher, insegura e insatisfeita consigo mesma, que já tinha visto tantas pessoas partirem que havia ganhado um caráter de concha. Molenga por dentro, com uma casca dura por cima. E a gente se perdeu. Pedi que você fosse embora, e você foi. Eu não queria que fosse, mas você obedeceu. Esqueci, não vou romantizar esse momento, porque ele foi o que foi, uma noite de dois estranhos que não sabiam o que queriam ou para onde estavam caminhando.
Você quer qual cerveja?
Aquela de 3 por 10, o gosto é ótimo no meu bolso.
Dez anos depois você serve meu copo mais uma vez, não me olha tanto porque não sabe se deve olhar, mas eu quero que olhe e veja a mulher que me tornei. Mesmo que você não soubesse nada além do que meu filme favorito, que já mudou inclusive, e eu não soubesse mais do que seus sonhos profissionais… sabia ainda que a constelação no seu rosto ainda me intrigava de alguma forma.
Dessa vez eu segurei na sua mão, lhe puxei para mim como uma mulher puxa o que deseja sem pudor, e disse: e qual o momento em que a gente se beija? Porque respeito muito ter um roteiro livre, mas com alguma certeza. Você disse: agora. E vieram uma, duas, três, quatro, muitas cervejas, mas eu estava sóbria no movimento de lhe querer me querer feliz por uma noite.
Depois de uma década sem sermos nada um para o outro, éramos estranhos que no fundo sentiam ter uma intimidade. A verdade é que nunca existiu essa intimidade entre a gente, mas nos tornamos pessoas tão apontadas para as mesmas questões, que o fato de termos passado uma noite juntos quando tudo que queríamos saber sobre nós mesmos sabemos nessa época das nossas vidas, fez uma grande diferença. Esse não era um reencontro um com o outro, mas de nós mesmos.
Encontrar com você aqui nesse bar é olhar para uma mulher do passado com medo de si mesma, que não se permitia sentir prazer. Sabe de uma coisa, que bom que você não me fotografou. Não sei se ainda me cabe o rosto daquela noite. Foram anos de rosto em massinha de modelar, que outros dedos e os meus próprios foram moldando, tive muitas expressões diferentes, algumas doeram, me desfiguraram, mas o bom da massinha é que dá para recomeçar. E aprendi a talhar minha imagem sem cobranças. Eu me vejo bonita hoje.
Toco na sua constelação, interrompendo sua fala, você toca na minha massinha de modelar.
Quando você vai me fotografar?
Em breve, sempre quis.
Ligo estrela com estrela da sua maçã do rosto com o indicador. Estou pronta para ir para casa e descobrir como é me entregar sem lençóis, medos, calcinhas apertadas ou neuras de projeções sobre o depois. Tiramos a roupa, sem muita cerimônia ou brincadeiras. Tem uma dose de pressa e desespero de se sentir ainda mais, sem tempo para pensar em outras coisas. Já não sou mais a menina que pensava obsessivamente no corpo gordo, mesmo que meu corpo seja ainda maior do que dez anos atrás… é hoje que vejo ele mais bonito, porque canta sem pudor, porque não se preocupa em se esconder, porque é ele que revela meu universo.
A constelação me beija mais uma vez, um beijo mais ousado de uma pessoa que também quer me dizer por onde esteve e no que se transformou, mesmo que a gente se conheça pouco. Sinto você gigante e com um cuidado ao repousar as mãos na minha pele com marcas das estradas de amores insípidos ou flamejantes, com as marcas do sol cobertas por tatuagens grandes em preto e branco.
A mão dança como um veludo, os dedos percorrem minha cintura, chegam na linha escondida que divide barriga e vagina, lembro que poucas vezes me tocaram nesse ponto, que fica encoberto pelas minhas gorduras. Aperta minha barriga com a naturalidade que eu mesma aperto durante a noite ou enquanto espero a água da chaleira ebulir. Eu e meu corpo não vamos sossegar até saber de onde você veio e porque tocou a gente assim? Como conseguiu?
Foi uma noite novamente, um ritual depois de uma década. Cochilando no ônibus, voltando da viagem, pensando em voltar e lhe ver, aprendi sobre constelações. Agora sei, é Órion no seu rosto. Dizem que Órion conseguia atravessar o mar. E o que é uma mulher que aprendeu a se olhar bonita se não um mar? Eu volto e quero lhe ver mais uma noite com novidades sobre quem sou e quero me tornar.