Três contos de Neide Silva
Neide Silva é psicóloga e atua no campo artístico em duas frentes. Como artista plástica, empresta seu talento para pequenas esculturas e telas. Como escritora, publicou os livros infantis Cigamiguinho, Sabina, a sapinha bailarina, Kaike e Iribi Sabiá, este último selecionado recentemente em um edital da prefeitura de São Paulo para ser distribuído em bibliotecas públicas e escolas do município. Atua no coletivo literário Maria Taquara/Mulherio das Letras – MT, que promove discussões acerca da literatura escrita por mulheres.
Os três contos a seguir fazem parte do livro A serpente de Eva, que ainda está sendo planejado por Neide Silva.
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Três contos de A serpente de Eva
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ENCONTRO NO CÉU
Os adultos da família diziam que os trovões e as chuvas eram consequência de Santo Antônio lavar sua casa no céu. Os trovões eram sons dos móveis que ele arrastava ao varrer o chão e as chuvas, as águas que jogava com o balde, ao esfregar, dizia minha avó paterna.
Lá de casa via o morro de Santo Antônio quando estava de frente e por trás, a serra da Chapada dos Guimarães. Até a segunda infância cresci em um bairro cujos arredores eram tomados pelo cerrado. Imaginava-me cortando o caminho até o morro e ao escalá-lo chegava mais perto do céu, na casa do Santo.
Antônio, alto, de pele clara, com barbas, cabelos por cortar, usava um manto cinza com um cordão amarrado na cintura, com seu balde nas mãos. Os pés grandes calçavam uma sandália de couro. Meigo e generoso, sorriso suave, parava a limpeza, pronto a me escutar. E eu me sentia acalentada, mas escondia certa rebeldia, apesar da delicadeza.
Visualizava os móveis pesados com os cortes simples grudados em pregos grandes, enferrujados: na entrada da porta, uma mesinha quadrada com um pote de barro com água, sobre um jogo de mesa. Imaginava-o arrastando aquele peso, e por consequência, o estrondo na terra.
De tempos em tempos, o morro me fazia encontrar o céu. Cresci e a cidade também. Vieram mais e mais construções, inúmeros prédios. Durante a adolescência, às vezes procurava o morro da varanda de casa, com muito esforço e malabarismo conseguia ver a pontinha dele, até que sumiu de vez, por conta das construções.
Agora, às vezes fecho os olhos e vejo com o coração. Nostalgia. Quando passeio pela cidade me pego procurando o morro e a serra em meio ao que virou a cidade. Lembrar das barreiras me traz a criança selvagem, peralta, que gostava de brincar de guerreira, talvez pelo fato de que os adultos falassem que por trás das barreiras havia dinossauros, extraterrestres e outros guerreiros.
Do morro chegaria ao céu e encontraria o Santo. Seu semblante parecido com o da minha avó. A rebeldia que escondia por trás da menina delicada era a vontade de perguntar a ele que, sendo uma pessoa generosa haveria de lavar a casa em momentos inoportunos? Na terra, cada vez que chovia, eu via mães correndo com os filhos nos braços a procura de proteção, crianças que tinham medo dos trovões.
Por várias vezes assisti à minha mãe chorar no meio da noite, tampando as goteiras que invadiam o cômodo em que dormíamos, por conta dele jogar água no chão com seu balde. Pareço ouvir o santo arrastar os móveis pesados no meio da noite, sempre que o céu pesado anuncia que vem vindo chuva. Como agora.
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PRESENTE DE OUTONO
O aniversario está chegando, e com ele, uma lembrança de infância. Toda vez ficava na maior expectativa de ganhar um bolo, talvez o maior sonho, como presente de aniversário. Imaginava ele redondo, coberto de glacê branco e ao redor, rosado, com a vela ao meio; feito cena de cinema. Penso agora em como devia ser desastroso reunir a família toda em volta daquele bolo redondo, dois quilos de peso, sendo a família tão grande. E o bolo tão caro. Na hora de dormir não conseguia lembrar os nomes de todos para pôr na oração.
Não sei ao certo quando parei de pensar em todos, talvez por ter engravidado ainda menina, com dezesseis anos, quando os pedidos de proteção eram voltados para a bebê; e também ao marido. A maternidade vem traz o peso da responsabilidade, se o barco está afundando pensamos primeiro em salvar os filhos. E hoje são três.
Houve um desses aniversários que nunca esqueci. Na semana em que iria completar seis anos, lembro ter ficado bem ansiosa, talvez fosse a vontade de ganhar o bolo. Chegado o grande dia, a ansiedade tomou conta de mim. Já havia passado a manhã e a esperança de ganhar o presente continuava junto a mim. Por volta das duas da tarde fui com o meu pai à casa da avó paterna e no caminho só pensava naquilo; e com as pessoas que amava ao redor do bolo.
Ao chegar, fui correndo para o balanço que havia pendurado na mangueira e lá continuei o sonho até que me desiquilibrar e cair, batendo com a cabeça no chão. Um lado da testa inchou, deixando enorme hematoma. Chorando muito corri ao encontro do meu pai e da avó. Eles, ao olharem o ferimento, disseram que não era nada, que apenas havia ficado um galo na testa e que logo iria sarar. E que o galo cantaria quando eu fosse dormir. Um galo que canta na minha testa?
Já não me bastava a ansiedade de querer um bolo, agora, havia a expectativa de escutar o canto do galo. Fomos para casa, eu e meu pai, e com aquela vontade de escutar o bicho cantando tentei dormir um pouco de tarde. Não consegui e nada do bolo. A noite chegou e com ela foi-se a esperança de ganhar o presente. O pai já se acomodava para dormir enquanto a mãe estirava os colchões no chão e armava a rede para nos abrigar. Fiquei em companhia do galo e com a esperança do seu canto, enquanto sonhava.
Talvez a espera fosse uma forma de negação pela falta do bolo, penso hoje. Meu aniversário é a cada dois de abril, – estação de outono. Foi em um deles que fui morar com o pai de minha filha, e foi em outro que fiquei viúva de seu pai. Nesse dois de abril tivemos a última dança. Pelos noticiários, fico sabendo do pico de pessoas infectadas com o corona vírus. Aproxima-se, mais um dois de abril. Pressentimos o aumento febril dessa pandemia. Já é outono e sinto o vento.
me deparo com a menina que cresceu
muitas coisas a de crescer
outras talvez sempre perdida
outono que derrama o passado de um jeito tão presente
como se o ontem e o instante fossem os mesmos
diluídos em partículas que chegam e me tomam
como argila sendo esculpida
abril tem como o seu dono
a estação de outono
e me aponta tanto a vida, como a morte.
a cada outono uma obra do tempo
que se aperfeiçoa e se descuida
escultor que faz de mim sua matéria prima…
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OS PÁSSAROS E A LIXEIRA DO CERRADO
Escuto o anu e o sabiá enquanto ilustro, lembro da infância. Pássaros, córregos, represa, estradinhas de chão feito pelo pisar das pessoas. Quantos sonhos naquelas pisadas, pensava eu enquanto caminhava até o destino. Como eram as pessoas que pisavam ali?
Às vezes, alguns pescadores voltavam pra casa com peixes nas mãos. Nos dias de chuva esperávamos em casa até parar para podemos seguir viagem. As folhas das árvores e plantas sorriam aos pingos, vestígios das chuvas.
Pássaros cantavam, o céu nos saudava e a ambição pelo ouro de entre as gretas com o leve correr das águas que a chuva abria. Nesse dia, a natureza se alegrava. Não me lembro de ter passado fome. Comia pão e tomava leite na casa da madrinha antes de cada viagem e já sabia que o almoço seria delicioso.
Era uma hora de viagem a pé até chegar ao destino. Na caminhada íamos escutando histórias da família, dos acontecidos da cidade e do mundo. E a expectativa do pagamento ao final do mês. À espera do almoço observava o cerrado mais de perto. Tocava o solo, os troncos e folhas das árvores. Sempre uma surpresa a variação de espécies de pássaros e lagartos.
Vez ou outra conseguia ver um macaquinho, mas de longe. Depois sentava em um balanço que, pendurado debaixo de uma lixeira e dali sentia o cheiro do almoço. Agora moro em um dos trajetos que fazia e nele se fincaram quatro bairros, incluindo o meu.
Foram três meses entre a casa de minha madrinha até aqui; no balanço, entre o cerrado e a espera do almoço. Madrinha me contratou pra ser companhia dela pra ela ir ao trabalho. Ela se dispôs a ser cozinheira por três meses em uma obra. O seu marido era mestre. Por conta disso, ele era quem chegava primeiro na construção. Eu e ela íamos em seguida.
Não me lembro quanto ela se propôs a me pagar, quanto iria receber pra lhe fazer companhia. Só sei que com o dinheiro pensava em comprar algum corte de tecido pra fazer um vestido rodado, um sapato novo, branco, estilo daqueles de boneca, com a fivela contornando o topo dos pés. E também calcinhas claras, cheias de florezinhas com um topinho na frente e contornadas por rendas.
Chegou o final do mês e eu na maior fascínio pelas compras. Mas não recebi. Disse que no mês seguinte pagaria tudo. O dinheiro que a madrinha recebeu mal deu pra pagar suas contas. Já havia tempo que ela estava sem trabalho.
Não desistir de acompanhá-la, mesmo não recebendo. Iniciamos o segundo mês com a mesma empolgação. Andar pelo cerrado me renovava, escutar os pássaros me fortalecia. Ao fim desse novo mês, volto com a mão vazia, outra vez. Continuamos no trecho até a construção para, novamente nada receber.
Era uma criança saindo da ultima infância. Talvez nunca saiba o que mais me marcou neste trajeto. Se foram os meses de barriga cheia, ou a esperança de ter roupas novas. Um vestido rodado e os sapatos de fivela. Só imaginava que por baixo das roupas estaria com uma calcinha nova sem nenhum furo, de cores suaves como um jardim no céu.
Ou a esperança de encontrar ouro entre as gretas. Naquele tempo era comum as pessoas procurarem ouro nas ruas depois das chuvas.
Há alguns pássaros que cantam em mim, e querem voar para o Cerrado quando o céu está aberto, bem azul. Então, quando eles se inquietam, vou para o mato; para o Cerrado, lá onde eles podem voar à vontade…
Jade Rainho
Senti poesia em tudo e caminhei com você pelo Cerrado, pelas memórias de uma infância simples mas muito bem vivida. Você escreve lindamente. Fico muito feliz em te ver compartilhando essas memórias, continue! Você é uma mulher admirável e muito inspiradora.