Três contos de Tércia Montenegro
Tércia Montenegro é escritora, fotógrafa e professora efetiva da UFC. Autora de vários títulos premiados, teve o seu livro Turismo para cegos (Companhia das Letras) eleito o melhor romance brasileiro de 2015, pelo prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. Mantém a coluna mensal Tudo é narrativa, no jornal curitibano Rascunho, desde 2016.
Os contos abaixo fazem parte do livro Linha Férrea (Lemos Editorial, 2001), vencedor do Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela Revista Cult.
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Linha férrea
Não conseguia mais dormir. Observava o sono do velho: braços e pernas estirados, inúteis. Apenas a cabeça permanecia viva, para dar ordens em alta voz e lançar olhares cheios de fúria.
No começo, quando era um menino, o velho quis educá-lo, funcionou como uma família inteira, com todos os cuidados. Era rico, sem herdeiros — foi fácil apegar-se àquela criança magra e suja, que se divertia improvisando armadilhas para aves, pelo simples prazer de segurá-las e ir arrancando, uma a uma, as penas de suas asas.
Depois do desastre, tudo mudou. Tetraplegia, e agora o menino, já adolescente, via-se obrigado a cuidar daquele homem transformado em estranha carcaça, que bem se poderia jogar num canto esquecido, não fossem os gritos que ecoavam pela casa.
“É como uma linha férrea desativada” — o médico lhe mostrava o raio X levantando a chapa contra a luz. Lá estava a coluna vertebral, na estrada completa, com todos os seus ossinhos aparentemente em perfeito estado. Mas agora não servia para mais nada, os membros paralisados, a teia dos músculos já frouxa. O velho precisaria de atenção constante: para ir ao banheiro, para passear na cadeira de rodas (estofada como um sofá), para mudar os canais da televisão… E os gritos a cada momento. Chamava o rapaz por qualquer motivo, um copo d’água que era preciso levar aos lábios, a mosca que lhe zumbia sobre a testa.
Ele quis contratar um enfermeiro, mas não conseguiu convencer o velho — era seu filhinho, não podia abandoná-lo na mão de qualquer pessoa. A partir daí nasceram os olhares de ódio, única ameaça do pai adotivo, intimidação silenciosa que dizia o que a voz não arriscava.
Os dias eram todos iguais, e a rotina lhe trazia certa habilidade com as tarefas. Fazia tudo no horário certinho: comida, banho, barba. Escovava os dentes do boneco de carne, penteava o cabelo escasso. E os assuntos repetidos, que ele respondia com silêncio, mas não podia deixar de escutar, desesperado com as mesmas histórias, as queixas. Por que o velho não fazia como os pássaros, que nem piavam nem nada, com as penas extraídas como dentes e as asas ao final completamente peladas, dois bracinhos tortos e nus, pingados de sangue?
O velho, porém, falava. Os olhos, se os buscasse, eram sempre iguais, inflamados de raiva, ódio de estarem ali, presos, enquanto o rapaz poderia passeá-los por onde quisesse, qualquer paisagem, qualquer corpo — era livre, móvel. À cada momento poderia deixá-lo, aproveitar a vida… mas ele não permitiria que aquilo acontecesse. Havia a herança, uma fortuna em dinheiro e terras. Certa vez mesmo disse o valor de seu testamento, incentivou o filho a falar, e foi das poucas vezes em que o rapaz conversou com ele. Os olhos então ficaram alegres — o seu menino fazia planos, ia comprar um carro belíssimo, hein? E uma fazenda, que tal? O dinheiro dá e sobra. Fazendona cheia de bichos. E viagens — poderia viajar para onde quisesse, sair daquele fim-de-mundo. Verdade que tinha enriquecido ali, as terras eram boas e o povo, ingênuo. Mas para os jovens aquilo devia ser uma cidadezinha de merda, sem diversão nenhuma, hein? Se era!
O rapaz chegou a rir, excitado pelos projetos. Dava palmadinhas na coxa do velho, que também se exaltava, esticando o pescoço. Ainda falaram de bebidas e mulheres, parecendo antigos companheiros de bar, até que o homem tossiu uma, duas vezes — e se calou, Depois o olho ficou novamente sério, a VOZ agravou-se:
— Mas isso tudo, eu lhe digo, só depois da minha morte. Até lá, você fica comigo, é sua obrigação.
Sinal de cabeça, afirmativa a contragosto. Como se um forte vento tivesse destruído a armadilha de gravetos e o passarinho emplumado já voasse bem longe… De volta às tarefas de sempre, tudo no horário certo. Mas ele não conseguia se concentrar mais em nada, nem dormir.
Caminhava pela sala silenciosa, dissolvido na penumbra, sem formas. Sala ampla, com a coleção de relógios antigos respirando metalicamente. Tão jovem, ele. Bonito, até — olhava-se no espelho, às vezes, e gostava do rosto moreno, de feições firmes. Tão distante da velhice, daquele cheiro adocicado que o tempo traz. A pele bamba despregando pouco a pouco da carne e da vida: tudo inútil, depois. Abre a porta da frente — o jardim está quase morto, repleto de folhas secas. Agora observa outra vez à chapa contra a luz. Uma linha férrea, sim. Sem ligações nervosas, sem circuitos, o trenzinho parado não se sabe em que canto do corpo, enferrujando.
Naquela cidade, a estação fica distante, os trilhos são longos e cortam as principais ruas e a praça. Lembra-se do primeiro encontro com o velho: ali perto, ao pé da ferrovia, ele menino, vendo aquele homem que andava normalmente e tinha descido do trem sem precisar de ajuda, sem imaginar que depois estaria inválido. Um convite para almoçar: ele, tão magro e sujo, adorou o bife com batatas. Depois, quando o homem o chamou para a casa, pensou que ia ser sempre assim, todo dia, filhinho-e-papai.
Entrou no quarto do velho. O sono custoso, sufocado, lábios soltos preparando ordens. Amordaçá-lo, sim. Como a um cão raivoso. Nunca mais ouvir seus gritos chamando, lá da cozinha, do banheiro. O homem se tornou essa cabeça aflita, que não pára de ordenar. O resto do corpo é indiferente — poderia encostar ferro em brasa na pele: tudo morto.
Pela noite, o passeio na cadeira-sofá; ele vai empurrando por trás e assim não vê os olhos do velho, de boca amordaçada, braços e pernas acorrentados na própria paralisia. “Vamos rever o local do nosso encontro, papai” — a voz baixa, só ela, no escuro.
Amanhã será livre. Dinheiro, terras, viagens — por que o velho foi falar? Talvez ele nunca tivesse pensado naquilo. O trem das onze chega logo. Sente um arrepio: a luz do poste iluminou o rosto do homem, o mesmo que descia na estação, anos atrás. Não podia imaginar que um dia estaria deitado na linha do trem, com o menininho lhe ajeitando os membros, cuidadoso como se buscasse o equilíbrio entre as madeiras de uma gaiola.
Afasta-se. Pensa em voltar rápido para casa; a cadeira de rodas leve, ágil. Mas não resiste a um impulso: o de ver os vagões correndo, correndo, atravessando a linha férrea e correndo, correndo.
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Pássaro
Cíntia é loura e magra. Tão magra que seus dedos estalam, segurando o lápis — a cabeça curva sombreia o papel. Entre dezenas de jovens, Cíntia se confunde. Quer sobretudo ser esquecida. Que não se lembrem dela, não a vejam — e escuta o professor sem fitá-lo, para não ser percebida. Olhos nos olhos de alguém: coisa insuportável. Ela se esquiva.
Em casa, desliza para o quarto. Longe da família, estende na cama seus membros finos, espalha os cabelos pelo colchão. Sonha que está lá em cima, pendurada nas nuvens, desenhando com flocos de ar. Amassa um pouquinho daqui, criou uma bola esfumaçada, nariz de palhaço que logo se monta. O céu silencioso, macio como um edredom — a eternidade inteira para construir castelos e cavalos. E quando Cíntia olhasse para baixo, não sentiria saudades da terra, agora minúsculo grão no arquipélago de areia. As pessoas invisíveis, distantes para sempre — e ela pura… livre, leve, confundida com gotas de chuva.
Às batidas na porta são um anúncio de tempestade. As nuvens ficam pretas, inchadas de ódio; Cíntia despenca do céu: está sendo chamada. Hora do almoço, a pior das torturas. Sabe que vigiam seu prato, percebem tudo — o modo como espalha a comida até as bordas, para fingir fartura; o jeito com que engole, disfarçando o sacrifício… E depois o peso no estômago, dilatando as veias. Espera o momento de sair, buscar uma farmácia. Vinte comprimidos, laxante — expurgar as dores, tornar-se leve. O farmacêutico desconfia: para que tanto remédio, menina? Ela treme as mãos, sem olhar para o homem. Tem vontade de se ajoelhar, pedir pelo amor de Deus que não lhe pergunte nada, se possível nem a veja. Pegue logo o dinheiro, fique com o troco, o troco.
Volta apressada. Precisa mudar de farmácia. A bata branca do farmacêutico: viu somente a bata, não o rosto. As nuvens brancas que de repente escurecem — por quê? Relâmpagos, as luzes; trovões, as vozes. Tudo o que perturba o céu, faz o céu imperfeito. Trancar-se no banheiro pelo resto da vida, que bom. Mas amanhã tinha de tornar à escola, e sempre existe alguém que se aproxima… Confusão nas escadas, corpos, corpos. Ela tão magrinha, quase vomitou na aula de Biologia. O aparelho digestivo — metros e metros de intestino, cobra enrolada ali dentro. A figura no livro, cheia de relevos e mucosas. Precisou desviar a vista: ainda bem que ninguém percebeu.
Mas o impressionante é que os outros não se importam. Naquele momento, ela se atreveu a percorrer os olhos pela sala, e viu que todos os alunos acompanhavam a matéria. Passivos, sem um gesto de horror. Não imaginavam aquela serpente nauseante, delgada, como parte de seu próprio recheio. Aceitavam, simplesmente, a idéia de ser matéria, como se é máquina, com engrenagens de carne, óleo de sangue.
O céu de noite: um mistério a ser conhecido. Pela janela do banheiro, pode ver o retalho de azul que escurece. Certa vez um rapaz lhe disse que ela era feito um passarinho. Cíntia pensou: quase, quase. Mas só se fosse um pássaro empalhado, desses que se pensa estar ali, mas já partiu há muitos anos. Ela queria mesmo ser nuvem, pedaço de algodão perdido no éter… no éden.
Quanto tempo para a noite? Havia mais remédios. Cabeça pesada — não devia lembrar que ali estava um cérebro, outro intestino, cinzenta cobra em labirinto. Pensava nos cometas de fogo, que pareciam aquecer debaixo da pele, mas por um instante apenas. Depois viria a paz eterna.
*
Meio-dia de verão
Estrada para o cais: quase deserta. Uma e outra gaivota cruzando tonalidades de azul. Pedra, muita pedra — arquiteturas pousadas num abismo. Só o velho homem modela sombras deitado na rocha, abrasado de pele, sem sentir.
Todo dia, aquele ritual: às doze horas se estende no berço duro, incrustado na terra. Um braço protege a vista, que explode em estrelas púrpuras. O magro corpo de um inseto, a distância. Mas são de homem estas pernas gafanhotas, pés como pinças, peito dedilhado em costelas. Superfície negra e lustrosa no fundo anil — o velho se esconde num sonho absurdo. O sol que pouco a pouco ingere, feito doses de morfina, já não pode queimá-lo. Trabalha agora por dentro, além da pele, buscando a matéria viva.
Os passantes se anunciam, pelos sons de areia. Buscam o cais, onde o comércio formiga. À esta hora, marginais de gorro verde esperam a senha de passagem. Amantes enciumados chegam ao precipício, fim da ponte, à beira de um vulcão de águas. O homem continua bebendo luz como um sôfrego, embalado ao vento.
Mais tarde, desfeito o vitral dos olhos, quando o sol se farta, é tempo de partir. Devagar o velho se estica, se esteira, palpita de secura, todo ele sede, diante do mar. O equilíbrio difícil nos membros, e o espanto dos turistas que percebem a escultura humana. O velho torna ao mundo ressequido — os muros pintados com gritos de revolução; as menininhas encantadas com o ocaso no céu. Quando chegar o inverno, o homem fará de sua casa um abrigo para milhões de gaivotas. Por enquanto, regressa, tangido como um galho na brisa: pensa que amanhã será outro dia, também iluminado.