Três crônicas de Vitor Necchi
Vitor Necchi (Porto Alegre, 1970) é escritor, professor, jornalista (UFRGS), mestre em Comunicação Social (PUCRS) e doutorando em Letras (UFRGS). Publicou o livro Não existe mais dia seguinte (Taverna, 2018), vencedor do Prêmio Ages – Livro do Ano 2019, na categoria crônica, e finalista do Prêmio Minuano de Literatura. Participou das coletâneas Quatro contos de Porto Alegre (Diadorim, 2019) e Qualquer ontem (Bestiário, 2019).
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Provas de que vivi
Queria me ver em muitas fotos que não existem.
Dançando, braços dispersos de mim mesmo, olhos fechados em transe particular. Em plena risada, imagem roubada, já que não gosto de sorrir para câmeras. Chorando, pupilas afogadas. Agarrado nos braços de pessoas queridas.
Há muitas fotos que gostaria de ter e não foram feitas.
Dando aula, mãos coreografando para ampliar o alcance da fala. Absorto em um desvão qualquer, detalhe prosaico, mas que me deixa alheio ao entorno, com cara de quem desvendou a chave para um universo paralelo.
Dormindo. Sim, gostaria de me ver dormindo, minha face despojada de qualquer ação premeditada, músculos em folga. Também uma foto da manhã em que li meu primeiro texto publicado em jornal, mistura de orgulho e vergonha. Do enterro do vô, quando o sol frisou o caixão com os últimos raios de uma tarde de abril, e a capela ficou bela e dolente.
Das pernas tremendo no primeiro gozo, quando me percebi assustado e apressado, escondido do mundo. Do primeiro beijo, quando descobri a maciez das línguas.
Deitado na beirada de um cânion em Cambará do Sul, incrédulo com tanta beleza íngreme e ameaçadora, certo de que descobri o divino naquele momento em que desejei ser tragado pelo ventre do planeta.
Ainda na adolescência, quando ouvi o primeiro disco que comprei com “Morte de Isolda” e nada mais me restou a não ser deitar no chão e morrer junto com a personagem trágica.
Uma das tantas tardes de domingo na infância, esquecido do mundo dos outros e absorto no meu, nas horas que se seguiam ao almoço, quando transformava o quintal em império, amassava folhas de jornal e largava uma a uma sobre as brasas da churrasqueira, para ver notícias velhas desabrocharem em chama, em flor incandescente.
A vó me apresentando o alfabeto em letras pintadas em quadrados de cartolina bege. Os pelos ouriçados em meu braço quando, numa manhã de sábado, li a crônica em que Caio Fernando Abreu revelou ser soropositivo. O primeiro dia de aula, quando tinha cinco anos, e me impressionei com o tamanho do pátio do colégio. A minha cara quando ouvi meu nome na formatura.
O primeiro voo, quando a aceleração abrupta daquele bicho grande pressionou meu corpo de poucos anos contra a poltrona. Meus olhos quando vi o braço de uma escultura em bronze do Rodin, prenúncio de um corpo inesquecível. A escuridão do roupeiro da minha tia, onde me escondia entre tecidos de texturas e cheiros tão distintos.
Sim, é isso. Queria todas essas fotos como testemunhos de quem sou e do que vivi, dos fatos que agora parecem alheios à minha vida.
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O silêncio dos obituários
Obituários de jornais expressam, por silenciamento, uma das faces mais agressivas e dolentes da homofobia: o apagamento do afeto que destoa do padrão heterossexual. Namoros, casamentos, enfim, relacionamentos de diferentes consolidações e configurações costumam ser suprimidos nos textos que registram e enaltecem, em tempo póstumo, a vida de alguém.
A omissão pode ter várias causas, todas vinculadas à relação em si: o casal não conseguiu lidar naturalmente, a família de quem morreu não a encarou naturalmente ou o jornal não tratou naturalmente o fato. Há ainda a possibilidade de que, por motivações próprias, quem decide o que é publicado tenha omitido a relação por se tratar de tema “delicado”.
Seja qual for o motivo, resta uma característica comum: faltou naturalidade para se lidar com o amor ou qualquer outro sentimento que aproxime duas pessoas que não cumprem o protocolo homem-mulher.
Excluindo-se o casal, não cabe a ninguém julgar a legitimidade da relação, afinal, desejo e afeto são prerrogativas exclusivas da dupla. A vida não se limita a uma fórmula binária que restringe as chances de duas pessoas. A vida é maior do que a lei. A vida não pode ficar refém de dogmas, preconceitos e moralismos.
As elipses no registro de relacionamentos verificadas nos obituários de gays, lésbicas, travestis, transgêneros, transexuais ou qualquer outra possibilidade mantêm conexão com a clandestinidade que assombra afetos dissonantes. O namorado que precisa apresentar seu companheiro como amigo. A mãe parcialmente tolerante que se refere ao genro como filho do coração. O companheiro impedido de velar seu parceiro na UTI porque não é parente. O pai que não admite em casa a namorada da filha lésbica. O rapaz que não ousa apresentar sua namorada travesti para os colegas de trabalho. A família de um gay morto que não reconhece os direitos patrimoniais do companheiro vivo…
As combinações de personagens e violências motivadas por preconceito e intolerância não têm fim. E isso, mais do que trágico, é desumano. Há algo tremendamente óbvio: gays sofrem com a morte de seus parceiros. E há algo muito simples: gays deveriam aparecer nos obituários de seus companheiros.
Por respeito. E direito.
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Se eu retornasse à morada dos ancestrais
Esfolei o torso da mão na pele áspera da parede. Era a casa da família, a casa da infância, dos primeiros sofrimentos, das descobertas, dos fascínios, da ancestralidade. A parede rugosa pintada de verde, envelhecida e imperfeita, rompeu o tecido.
Na fantasia da meninice habitada por microscópios e experiências científicas, desdenhei do sangue que brotava e fiquei pensando nas células que, arrancadas de mim, estariam presas no reboco. Esta imagem presumida – minhas células, meu tecido grudado nas reentrâncias da parede – é recorrente no repertório de momentos difusos no tempo que constituem uma espécie de diário canhestro, uma coletânea aleatória de cenas e fragmentos do que fui e do que vi.
Nos dias seguintes à ruptura da pele, à dilaceração minúscula, imaginava ter o auxílio de óculos especiais que permitissem me reconhecer nos fragmentos fixados na tinta descascada. Lembro de ter encostado meu rosto na parede, na tentativa fracassada de ampliar a visibilidade de meus restos ínfimos. Nem respirei. Temia que o ar morno espalhasse as células.
Desconheço quantas demãos laminaram a parede. Quanto de mim está preservado nesta topografia? Que porção do meu corpo resta adormecida entre décadas empilhadas de tinta?
Quando tinha 30 e poucos anos, lembrei desse sangramento frente ao mesmo lugar, no mausoléu vertical que abriga parte de minha matéria. Poderia, de maneira atenta e delicada, escamar a parede, livrá-la da sucessão de pigmentos para resgatar minhas células. Ou, de maneira contrária, tão somente mergulhar na porosidade da tinta, do reboco e do tijolo, me reintegrando a mim ou ao que um dia fui.
Começaria esfolando a mesma mão rompida até desmanchá-la, até todo tecido, a carne, o sangue, todo osso ser absorvido pelas diversas camadas, até minha matéria viva reencontrar os vestígios daquela que foi morta na infância. E quando não existir mais nada do que sou hoje, reencontrarei na superfície do tempo preservado e esquecido o que fui um dia.
Todos estarão dormindo nos aposentos de uma vida inteira sem suspeitar que retornei à morada dos ancestrais, sem pressentir que me emparedo nas lembranças, sem testemunhar que – finalmente – me reconheço nas entranhas da tinta verde que um dia subtraiu parte de mim.
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(Fotografia de Carlos Macedo)