Três crônicas de Waleska Barbosa
Waleska Barbosa nasceu em Campina Grande (PB), em 15 de março de 1976. É mãe de Morena. Filha de Maria e Manoel Barbosa. Neta de Severina e Cassimiro, Ana Maria e José. Tem onze irmãos. É especialista em Comunicação, Mobilização e Marketing Social pela Universidade de Brasília e graduada em Comunicação Social pela Universidade Estadual da Paraíba. Desde criança tem na escrita sua forma de interagir com o mundo. Em 2017, decidiu abraçar a literatura e criou o blog www.umpordiawb.com.br, a partir do qual aprofunda sua identidade como mulher negra. É desse lugar em que se enxerga e às relações, baseando sua produção literária. É colunista da Revista Mães que Escrevem e do site Bora Cronicar, criados e conduzidos por mulheres. Teve textos publicados pela revista LiteraLivre e em coletâneas de autoras femininas. Que o nosso olhar não se acostume às ausências, livro de crônicas, edição independente, é sua obra de estreia, lançada na Feira de Livro de Frankfurt, na Alemanha, em Brasília, na Câmara dos Deputados a convite da bancada responsável pela exposição (Re)Existir no Brasil e na Feira Literária de Campina Grande.
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A CONQUISTA
Estava ao lado de um amigo enquanto ele escolhia um profissional para a prestação de um serviço para sua empresa.
– Escolhe uma pessoa negra.
– Por que deveria?
– Para diminuir o número de gente preta limpando o chão.
– Isso não é critério para mim.
– Deveria ser.
Isso.
É a cor da pele.
Quando as cotas são instituídas, isso, passa a ser um critério válido. Institucionalizado. E tem evitado que muitos negros limpem o chão. Tem proporcionado a outros muitos serem os primeiros a ostentar, ou apenas ter, um diploma de curso superior. Que estejam rompendo, pela primeira vez, um histórico familiar e ancestral de ocupações em subempregos e funções de baixa remuneração. Levando-se em consideração o momento em que pudemos tentar viver do suor do próprio trabalho. Quando esse suor não servia a outros. Não era misturado a sangue. Dor. Diáspora. Invisibilidade. Sob o nome de “trabalho”. Escravo.
Quando meu pai passou longos dias internado em um hospital de Campina Grande-PB, a única profissional negra que entrou no quarto era a responsável pela limpeza. A segunda era uma médica. Minha irmã. Não fazia parte do quadro. Não conta aqui. Nessa conta. Uma conta que não fecha. Uma conta deficitária. Uma conta cruel. Uma conta que exclui. Uma conta que diminui.
Um dia, em São Luís-MA, ouvi uma história de superação do motorista do aplicativo. Dizia que seu filho fazia faculdade e ainda estagiava. As ocupações tomavam todo o tempo do jovem. Ele reclamava. Mas o pai explicava que valia a pena. Ia se formar.
Mostrou-me a foto do rebento.
Eu respondi: – Isso mesmo. A gente que é preto tem que estudar. Tem que se formar. Isso é luta e resistência.
O homem parou de falar. Cortou o assunto. Com aparente irritação. O que senti é que a palavra “preto” o ferira. Era como se ele retrucasse: – A gente quem, cara pálida? Quem é preto aqui?
E eu gritava. Embora silenciosa – o nosso diálogo não foi retomado. O senhor. O senhor é. Seu filho também. E quanto mais evitar enxergar essa palavra. Quanto mais engolir as letras. Quanto mais sua cor de pele, nomeada, parecer um palavrão indizível. Quanto mais tentar empurrar essa realidade para debaixo do tapete. Quanto mais esconder o sol com a peneira. Quanto mais fingir que ocupa um lugar que não o seu.
Mais será engolido. Mais seu filho se afastará do diploma. Mais será alvo de franco atiradores. Mais será desviado pelas calçadas. Mais será seguido nas lojas. Mais será ignorado. Mais será visto/utilizado/nomeado/usurpado/vitimado/assassinado. Como o preto. Pobre. Que é.
Ouse gritar-se negro. Para ver. O portal que se abrirá. O quanto o mundo o respeitará. Pelo menos o mundo que o habita. Saindo dele. Será mais fácil conquistar. Os outros. Os quatro cantos. Todos eles.
Se naquele tempo eu já soubesse falar. Nosso diálogo não teria terminado ali. Minha voz se faria ouvir. Eu o gritaria negro. E ele ergueria o som como um troféu. Enfim. Eu também tive que aprender. A dizer. Sou negra. E ainda tateio no portal. Tão profundo que vira o mundo.
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A FALTA
Foi como um banho de água fria. Ouvir aquela mulher. Louvada. Pela sua força. Pelos seus feitos. Pelo lugar onde chegou. A despeito de ter a pele preta. Mulher simples. Do povo. Atributos que usamos para certos encantamentos que nos embotam os olhos para o que a manteve ali. Na condição de mulher simples. Do povo. Sim, podia ser pior. Acho que é esse o consolo. Mesmo que ela tenha tido coragens. Tenha dado um passo adiante. Sua voz tenha encontrado eco. Suas palavras façam diferença. Faltou-lhe o verbo. O tempo verbal. Autoprotegida, como não podia deixar de ser, para a garantia do viver e do sobreviver que a colocavam ali, refez a sentença. Até achar um jeito plausível de dizer o que queria. Ainda assim faltou-lhe o verbo. O tempo verbal. Eu, que não abro mão do meu sotaque (como algo que não teria que perder como sugerem-me todos com tom de obviedade) e ando sempre ostentando, com orgulho, um “nordestinês” com o qual me dou muito bem e tenho intimidade, achei, pela primeira vez, que havia mais seriedade. E lamento. Naquilo. Do que eu supunha. Foi injusto – negar o direito a falar, com correção, ainda que a oralidade nos dê inúmeras licenças. Ainda que estejamos em país continental. Ainda que haja vícios de linguagem fora do âmbito das drogas ilícitas e, portanto, aceitos sem punição. Ainda que estejamos arraigados a expressões idiomáticas capazes de nos apontar identidade em meio à multidão. Ainda assim. Considerei que a ninguém devia faltar o verbo. O tempo verbal. E percorri com a memória todas as peles marcadas pelo sol da lavoura. Todos os dentes faltando pela ausência de cuidados. Todos os pés rachados pelo contato demasiado com o chão. Toda a simplicidade. Em certa medida poética. Toda a pobreza. Inteira de crueldade. Avistei todos os torrões – os conhecidos. Os intuídos. Busquei perfilar todos os motivos para que a tantos, a tantas houvesse sido negada a alfabetização. O estudo. O conhecer a arma do dominador. Lamentei. A falta do verbo. Do tempo verbal. O roubo. Do enxergar. Desbravar. Ressignificar. Decodificar. O que vem das palavras. O saque do poder articulá-las sem passar o apuro de procurar e não encontrar. Senti raiva. Do tempo. Da história. Do poder. Dos poderosos. Das diferenças geográficas. De raça. De classe. De gênero. Naquele momento quis que a mulher apesar de inserida. Não fosse diferente dos outros. Donos de títulos. E cargos. Ela estava no mesmo patamar. Como igual. Mas uns eram mais iguais que os outros. A ela. Faltou o verbo. O tempo verbal.
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A MENINA. SUPER-HEROÍNA
Quando vi Ágatha pela primeira vez, era cedo da manhã.
Sua pele preta. Seus cabelos cacheados. Seu sorriso. Fizeram-me lembrar de mim. Na infância.
Sua roupa de super-heroína puseram em mim um sorriso de canto de lábio que acompanhava um pensamento. A alegria pelas peraltices da crianças. Pelas fantasia e simplicidade. Fazem de coisas tão desimportantes a nós, adultos, a razão de existir de uma criança. Que valor teria sua vida se não pudesse virar Mulher-Maravilha?
A próxima coisa foi ler o texto que acompanhava e legendava a imagem. Havia curiosidade em saber a razão de figurar no Instagram do meu colega jornalista Marcelo Canellas.
Foi então que não acreditei. Que emudeci. Que reli. Que queria que você fosse mentira. Fake News. E ao descobrir que não, sofri. Chorei. Levei para o dia inteiro, essa dor da incredulidade. Da inutilidade. Eu poderia ter escrito sobre ela naquele momento. Mais tarde, toda a imprensa e todas as pessoas fizeram de Ágatha alguém que constava em seus veículos, suas Redes Sociais.
Quando vi Ágatha pela primeira vez e soube do motivo por que eu a via. Silenciei. Eu pensei na minha filha. Apenas um ano mais velha. O quanto vidas tão curtas são tão longas em amor. Em significado. Em esforços. Em lutas. São enormes mesmo. Infinitas. Eternas.
E já era no lugar da eternidade que figurava aquela vidinha de oito anos. Tão largos. E longos para quem cuidava dela. Mas não pode deter a contundência de uma arma. Esta sim, super–poderosa. Nas mãos de vilões que transformaram a Mulher-Maravilha em cadáver. Que desfizeram seus gestos. Para lhes cruzar as mãos.
E para que nunca mais se postassem em gesto/esperança de extirpar o mal do mundo. O mal paralisara a criança. De pele preta.
Eu não quis falar de Ágatha. E ao ouvir Gilberto Gil pensei que ela era como o luar. De quem não há mais nada a dizer. A não ser que a gente precisa ver o luar.
Como enxergar o luar composto pelas crianças. Negras. Moradoras de comunidade. Amadas. Como ver as que estão na rua. As que acompanham adultos perto do supermercado da minha quadra e que diferem tanto de minha filha, tendo a mesma idade? Como transformar a dor. As palavras. A opinião. Em algo que faça diferença?
Eu não somos todas. A minha filha não está na Kombi. Não está no Complexo do Alemão. Não está no Rio de Janeiro. Ainda que esteja, como todos estamos, na mira de uma política de estado que resolveu assumir o que sempre a moveu como um fio tênue e invisível. Em que vidas negras não importam. Poucas vidas importam.
Atirem. Atirem. Matem. Matem. E só depois nem perguntem. O movimento das Redes Sociais já é sabido. Dá e passa. Antes que se esgote já haverá outro caso. Já haverá mais do mesmo.
Outra criança. Outro segurança. Outra família. Outro engano. Outro pedido de desculpas. Outra tortura. Outro confronto. Imaginário. Outra pele preta tão ameaçadora quanto inofensiva que precisava ser barrada antes de provar-se não letal. E mesmo que fosse.
Outro avô. Outra mãe. Estendendo blusas ensanguentadas. Revendo antigos sorrisos. Agora só possíveis em fotos que circulam. Intimidades forjadas pela ausência de quem já não está aqui para contar a história. A história que se deseja embaixo do tapete. Ou de sete palmos.
E veio Gonzaguinha. Guerreiros são meninos. A guerreira Ágatha, agora nossa, não conseguiu fazer muito para dominar o mundo. Livrar-lhe dos malfeitores. Poderes parcos. Ausentes. Foi vencida. Derrotada. Assassinada.
À paisana – simples menina. Fazia balé. Falava inglês. Estudava. Estava desarmada. Não entrou em confronto. Seu mundo não comportava tanta realidade. E, na sua fantasia, podia seguir. E sorrir.
Guerreiros são pessoas.
Seu sonho é sua vida.
Se você não tem a sua vida, Super-heróina Agatha.
Não dá pra ser feliz.
Descanse.