Três poemas de Ângela Coradini
Ângela Coradini é escritora, pesquisadora e roteirista. Tem doutorado em Cultura Contemporânea (UFMT) e é autora do livro, resultado da tese, Imagens-espectro de futuridades no Amplo Presente (2020); e dos livros de poesia …Já não podem ser amanhã (2020) e Quatro nós (2021). Também é editora na revista eletrônica Ruído Manifesto.
***
Poema 36.
– queria ficar, queria caber
o desejo é barulhento, mas calada
tenho a mania solta
de me descrever para as suas cenas:
“faz frio para além da porta dos fundos
bebo uma taça de brilho carmim
e me deixo sob essa coberta púrpura
na fumaça, por cima do muro,
o céu se faz vermelho na direção do rio
o vento enviado pela noite arrepia,
meu corpo quase nu e suado em febre
mas o frio da sua ausência se faz presença
eu cubro a cabeça e meus pés destampam
o aconchego é sempre tão curto”
– queria não te ter, para não poder te deixar
insisto, só, em voz alta
mas tenho a mania presa
de não me fazer entender em cenas
enquanto me endoideço em sua frente:
“a taça dançou pelos meus dedos
pude me ver destroçada
na eminência da queda dela
a coberta destampou,
desta vez, minhas artimanhas
sutilmente
sou interrompida
pelo novo vagar da mente
como se me perdesse durante uma oração
lembro da adrenalina do desassossego,
dias atrás,
e de como tudo se transmutou
nessa presença sua triste”
– quantos zeros posso pôr atrás dessas horas?
entrego-me à noite que me rejeita
porque tenho a mania oca
de me abraçar a cicatrizes
enquanto me recordo nelas:
“o cobertor não dá conta de mim
eu não dou conta de parar de escrever
puxo, cubro, rasuro
tento encontrar um modo
de me caber em mim
é uma apneia em vigília
um, dois, espaço… cinco
me coloco em sua dor
me tiro do seu dia
me quero em seu sono
me culpo”
(o último gole de tinto)
– queria ficar!
a manta me descobre a fé
– queria caber!
mas só faço você me odiar
e a luz do vizinho se apaga
eu já não vejo minha sombra
minha companhia
só por hoje
não continuo a descrever
nossos fantasmas
Poema 39.
tudo é sobre
detalhes
que eu nem mesmo
ao menos
conheci
o ar não nos suportava
Poema 49.
quis te fazer uma dedicatória
mas tudo aqui transborda você
e você é tantos
que nesses anos te sobrepus
um sobre outro
e seu imenso tamanho
me engole de todos os lados
releio você em todas as minhas rasuras
a língua te transgride
meu desejo te remonta
a mente te incendeia
para que sejas nada
quis te odiar
por ter devorado minha paz
por ter-se feito vício
mas a sede sua
me arma ainda tantas tocaias
aquela capa branca em laço vermelho
pesava
os dias derretiam seu olhar
que pesava
e a paz se demorava tanto a vir
que acabei eu
embrulhada em livro