Três poemas de Anna Clara de Vitto
Anna Clara de Vitto (Santos, SP) tem 33 anos, é poeta e autora de Água indócil (Urutau, 2019). Desde 2017, integra a coordenação do Clube da Escrita para Mulheres, fundado pela escritora e poeta Jarid Arraes. Pela Casa das Rosas, em São Paulo, frequentou o Curso Livre de Preparação do Escritor – CLIPE (2018) e o curso Poesia Expandida (2019). Publicará em breve sua primeira plaquete artesanal, intitulada MEADA.
Os poemas abaixo são inéditos, e – com exceção de “brilho eterno de uma mente sem lembranças, 15 anos depois” – serão publicados na plaquete artesanal MEADA, com previsão de lançamento para novembro de 2019.
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devo pontuar:
não pensei em você quando escrevi
amar-te distante e estranha
como as ilhas do canal da Mancha
pensei em pizarnik
em espelhos mágicos
que distorcem reflexos
e em desiertos sin amor
no tempo da bondade
nós ainda não éramos nascidos
era 2017
agora
penso em como te transportar
para além dos Pireneus
mas ainda sonho
com a névoa de Luzenac
com as casinhas de pedra
na estrada para Andorra-la-Vella
com as praias da Normandia
com os cadáveres no mar
com o esgar dos alemães
é preciso atravessar os Pireneus
com uma guerra rasgada no peito
para que haja paz nestes olhos sem paisagem
*
uma falha na tessitura das coisas:
uma possível dezena de passos
entre o balcão
e a saída do salão
a cerveja
mais cara do que gelada
uma possível dezena de pregas
na saia xadrez
um olhar
sustentado por menos
que uma dezena de segundos
outro olhar
espatifado no assoalho
uma singularidade de contas
brilhantes e verdes
espalhadas e invisíveis
e
incontáveis passos perdidos
entre a saída do salão
e os meses seguintes
*
brilho eterno de uma mente sem lembranças, 15 anos depois
I.
mary svevo tem boa memória
imagino-a de jaqueta preta
cabelos sujos rímel borrado olhar fixo
carregando pilhas de envelopes pardos
exasperando um funcionário do correio
mary svevo é uma vendedora ambulante
de enciclopédias raras
para quem é urgente oferecer os ouvidos e
um café passado na hora
mary é uma mercadora de mapas
ganhando a vida nos trens de subúrbio
sem temer o avanço dos aplicativos
porque ela é a guardiã de cartas celestes
que alteram órbitas de planetas luas
e rotas de meteoros
poetas e suicidas desistentes
devem obras e vidas a mary svevo
afinal
mary svevo tem boas memórias
II.
mary intercepta meu caminho
do banheiro ao quarto de vestir
pisando na trilha de gotas grossas
poupadas pela toalha
estou completamente nua
quando ela dispara:
quer mesmo saber?
eu digo sim
sim por favor
e mal disfarço
um soluço ansioso
mary conjura um toca-fitas k7
e de súbito me torno solene
como quem espera o início de uma missa
de corpo presente
ouço os cliques da língua do dr. mierzwiak
enquanto cuspo porradas poemas sumiços
ouço os suspiros do doutor
enquanto você se exime e cita amy winehouse
‘cause you’re my fellow my guy
and you know i’m no good