Três poemas de Cristiano Castilho
Cristiano Castilho nasceu em Curitiba no carnaval de 1984. É jornalista formado pela UFPR e pós-graduado em Jornalismo Literário pela ABJL. Publicou o conto Compressa pela editora Tulipas Negras, em 2012, e o conto Alvorada no Livro dos Novos (Travessa dos Editores) em 2014. Venceu o prêmio Minicontos, da Geração Editorial, em 2012. Em 2019 lança Crônicas da Cidade Inventada, pela Editora Arte & Letra.
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[11h57]
sensibilidade demais é como se uma folha seca e quebradiça juntasse seus pedaços e voasse em seguida para cair e quebrar novamente.
conectar meu estado de espírito à capacidade de reação diante do mundo me faz irreconhecível.
esponja. as coisas são sempre mais do que são.
não se culpe pelos seus prazeres, ouvi.
sou um filme, “o regresso do estrangeiro expulso”.
bocejo saudades: nas tardes dos dias de sol frio, eu criança, a segurar as pontinhas da blusa de lã debaixo para tirar o casaco em segurança.
existo em partes, sinto todas elas. um fio metálico em brasa rasga um naco da minha carne, e faz da fumaça um sinônimo daquilo que sublima, finge que existe, e some.
não sei como sou com os olhos fechados.
*
[15h28]
uma saudade não se nega. agora é tarde cinza com ex-manhã de neblina. agora é a minha vida. todos com a cara de quem precisa dormir um ano inteiro a mais, no meio de poças d’água madrugueiras. a cidade deveria ter ponto facultativo nesses dias. poder escolher não acontecer. de outono, nem folhas. a calçada continua com a marca que deixei quando criança. pezinho inocente ficou para sempre fincado no cimento bruto. um carro me dá a vez na faixa de pedestres, segue-se o tchau do motorista barbudo numa mão, noutra o volante de madeira. jogo o cigarro no lixo despedaçado. entro na loja de discos. está tocando Wild Nothing e Wild Nothing é o som do que poderia ter acontecido.
o vento daquele dia no trapiche da cidadezinha do litoral. havia pescadores com redes nas mãos num mar sem onda. um menino empinava o arco-íris. lembrei que um festival de música acontecia aqui no inverno. clarinete na igreja de madeira, ópera no Theatro, feira à meia-noite, vinho barato. num concerto de música étnica te abracei pela primeira vez. o rabo do meu cachecol voou sobre o seu ombro. o frio à beira-mar causava uma vontade imensa de nos transformarmos de repente em algo a mais, você lembra, não pela possibilidade física de entrarmos um no outro, mas pela improvável comunhão de sentimentos, que só acontecem vez ou outra em uma cidadezinha litorânea com casas pequeninas e cachecóis disponíveis.
lembrei disso quando entrei na loja de discos.
tocava Wild Nothing no seu carro, onde dormimos quase para sempre em posições impossíveis. desenhei uma cara engraçada no vidro embaçado e o nariz foi coisa sua. ainda havia vinho na sua boca, pastel na feira e música na igreja.
só sabemos das viagens inesquecíveis quando sentimos saudade. e saudade não se nega. não me arrependo do que não aconteceu, porque havia os barcos coloridos de nomes engraçados, um bicho morto sendo comido por aves enormes, as pedras que ninguém sabe como foram parar lá. essa areia aqui é muito grossa, tem cacos de conchas e pedras que fazem cócegas no pé.
o cachecol poderia ser maior, não? para cobrir as orelhas, para estendê-lo como a provação do que aconteceu. a criança ao meu lado e a criança dentro de mim sabem que a melancolia em se perder sem motivo tem lá sua alegria: é sempre no passado intocável que resiste a beleza pura.
vamos ouvir a banda na praça? queria que você me dissesse o quanto a vida dói em ti. compartilho desses sentimentos desajustados que vez ou outra viram poesia. vida é processo, não resultado.
*
[22h46]
gostaria de escolher minhas dúvidas
de sortear minhas desculpas
direcionar meu amor.
gostaria de mentir sobre você
para que você não exista
simplesmente
de inventar o meu nome para fazer a mínima justiça
justiça ao meu legado inadvertido.
gostaria de alcançar minha alma refugiada,
e retorcê-la.
de te esconder sob o meu corpo e
criar pássaros azuis
sob a sua tatuagem nova
sempre nova tatuagem.
gostaria de ouvir guitarras num pedal fuzz
último volume
em todos os seus dentes que cantam
de escalar uma montanha agora e ao mesmo tempo
levar um murro dentro dos olhos.
seria como se uma pedra
atravessasse
todas as minhas lágrimas guardadas para o futuro.
e reconstruísse a cachoeira daquela vez, dizendo que algo sentido é algo a ser descoberto