Três poemas de Danielle Magalhães
Danielle Magalhães nasceu em 1990 e vive no Rio de Janeiro. É formada em História (UFF) e faz doutorado em Teoria Literária (UFRJ). Atua como poeta e crítica, publicando poemas e ensaios em diversos periódicos e revistas eletrônicas. Lançou o livro de poemas Quando o céu cair pela Editora 7Letras em 2018.
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chama
o verão não deixará indícios
do que continua
queimando a conta gotas
o amor existe apenas
se a distância
existir como parte do processo
de aproximação entre
duas avenidas os destroços
pegam fogo as bocas
chamam um nome
que jamais irá amar novamente
somos interrompidos
como um verso
eu nunca vou escrever
um poema expressionista
anunciando o fim do mundo
uma mulher escreveu
a História
é uma história de muitos começos
e nenhum final
à distância ali
na esquina tragando
fumaça enquanto conversava
sobre o que é
amar ela disse
um poema continua sendo
um corpo todo cortado
esperando o início
da narrativa
*
do outro lado
do outro lado
o mundo tem um brilho
tão antediluviano
como uma jaca
aqui cheira à morte
e arroz
e a moça faz a unha do pé
ao mesmo tempo em que corta
a carne que vende
no mercado popular encontramos
todos os tempos da história
no relógio que não funciona
está escrito esta obra
pode alterar o funcionamento
de um marca-passo
cuidado não vá por aí
apontando esse cano
para a cara das pessoas
no rosto dela há duas covas
são o delta do mekong
desaguando no canto
da boca enquanto ela
sorri entre as carnes penduradas
há um sorriso há um dente que falta
há uma imagem que manca
entre as carnes penduradas
há dois olhos arregalados
e uma cara de espanto
entre as sobras
das carnes penduradas
há uma imagem que falta
do outro lado não sabemos
se ele é um soldado
ou um adubador
do outro lado tudo é
equívoco e contingência
é difícil pensar
que não fotografamos nem o tijolo
nem o sangue
quando o sangue e o tijolo
são os que mais resistiram
ao tempo
hoje talvez eu não queira andar tanto
para ir ao extremo do outro lado
é embaixo do viaduto da mangueira
que eu atravesso com mais frequência
por todos os lados
as marcas da guerra
são as partes que faltam
*
desvio
tenho conseguido fugir um pouco
de tudo só para doer menos
mas vez ou outra me pego
na voz metálica da vizinha
brigando com os gatos
ou falando da buceta fedida
no verão vez ou outra
preciso me lembrar de fazer amor
como se não houvesse baratas
me pego na lente da câmera
da mulher que não consegue
tirar fotos na síria
mas ainda assim tira
vez ou outra
me pego fugindo
da bola
nos jogos da escola
ou sendo atingida por uma
no peito
no meio da rua
como quando eu tinha 4 anos
meu pai saiu armado
para brigar
até hoje eu continuo com medo
de bola e de bala
vez ou outra
me pego no cano
do revólver do meu pai
errando o caminho
da fuga só para não parar
em algum lugar do abdômen
da minha mãe
que dói mais que
a bola no meu peito
e talvez mais que a bala
que continua perdida
vez ou outra me pego
atravessando
a mira que meu pai errou
e paro no buraco
que a bala acertou
em seu corpo
como tudo que vai
e volta vez ou outra
eu me pego
fugindo um pouco de tudo
mas às vezes
eu saio de triagem
e paro lá no fundo
da imundice do metrô
até chegar na glória
desejando ser comida
como a bala
que você mastiga
há meia hora
debaixo do chão
sem pensar no gosto
que é viver permanentemente
na dor
às vezes só nesse momento
me sinto doer menos