Três poemas de Dédallo Neves
Dédallo Neves tem 28 anos, é doutorando em Sociologia pela UFPR, onde pesquisa entre marxismo, literatura e pensamento social. Foi finalista do concurso Contos da Quarentena (Editora Kotter e Brasil 247), em 2020, publicou em antologias de contos, e seu livro de estreia em poesia Viagens fantásticas, pesadelos cruéis (prelo) foi contemplado no prêmio Outras Palavras, em 2020. Nasceu e vive em Curitiba.
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Porque quando
A vida não está no texto
Porque quando
Tenho medo de tomar banho
Tenho medo de ir à rua
Tenho medo de um negocinho
Não é no texto que o medo está
Porque quando
Escrevo sobre
Meus medos
Não tenho medo deles
Esta não é minha vida
A minha vida não está no texto
Porque quando
Leio em Dostoievski
“Nunca mais que um segundo
Definitivo”
É em minha cabeça que sinto
Sinapses bêbadas
O texto poderia estar na vida
Porque quando
Cantamos juntos em alegria
Damos texto ao nosso diálogo
Mas quando esqueço o próximo verso
Porque estou a prestes de…
Aí é falta de texto na vida
Por isso, não falo
Meu medo de tomar banho
Quando estou sozinho em casa
É difícil de pôr em texto
Os sons que ouço
As tonturas
O ritmo
É só um segundo
O ataque avisa
Mas é só um segundo
O ataque mostra
Só um segundo
O ataque chega
Um segundo
Caí
A velocidade explica
Porque quando
O descompasso dá presença
Pego meu celular
E ando com ele às vistas
Já desbloqueado
Porque em um segundo
Definitivo e ligeiro
Eu caio
Porque salvei contatos
De emergência
Porque disse em apps de saúde
Sobre minhas doenças
Porque é fácil ligar para…
Quando aperto um número
E gaguejo entre babas
Socorros
A minha vida não está no texto
Porque no texto
Não está minha falta de dente
A vergonha infantil
O dinheiro que perdi
Porque quando
Tremi e fiquei banguela
Alguém me assaltou
Levou o celular
Não deu tempo
É só um segundo
O ataque avisa
Mas é só um segundo
O ataque mostra
Só um segundo
O ataque chega
Um segundo
Caí
Estirado no chão
Aquele corpo trêmulo
Convulsivo
Convulsivo
Não tem como descrever
A cabeça no chão
O sangue pelos cotovelos
A palma da mão
A rasgar sem piedade
As pedras
Mesmo assim
Alguém me assaltou
Levou minha carteira
Eu era ali um indigente
Convulsivo
Quando dei por mim
Vi meu pai e minha mãe
Sempre quando me percebo
Estão lá
Era tudo branco em volta
Embaçado
Eu tinha a vista prejudicada
O bandido me chutou a cara
As mãos perderam
a sensibilidade
Eu era
o Bicho
o Excomungado
Aquele-lá-debaixo
A senhorinha viu e não fez nada
Julgo? Não julgo
Em texto destas coisas não falo
Porque muitas passei
Lembro até hoje das buzinas dos carros da faixa de pedestre minha cara no asfalto rodas a milímetros de distância e alguém tentando me puxar desesperadamente era eu uma quase consciência de mim tentava dizer para deixar porque eu tinha querido aquilo porque um dia antes bebi um litro de café entre duas e três da manhã e os carros passavam e me sentia um fardo social porque o Samu chegaria e faria o quê com o lambedor de asfalto?
A memória recente acaba
E se tiver sido um dia
De leitura intensa
Uma pena
Perdi o texto
Porque quando
Depois de tudo,
O choro.
*
Que gente era aquela?
Quem foi aquela criança
com os dentes para frente
e com o desespero do sangue
a escorrer entre o corpo
e não entender-se
entre o vermelho
e precisar de dentista
no fim de semana
e de um cirurgião?
Quem foi aquela mãe
a aparar gritos
e gritar por Deus
ao ver os dentes no caminho
e um rastro assassino
entre os cômodos
e suportar intranquila
seu filho a olhar para ela
e olhar para o espelho
e se desesperar
e não entender o que acontecia?
Quem foi aquele pai
a ligar o carro
e fazer telefonemas
perguntar para a avó
se a irmã podia ficar
pois havia emergência
e quase desmaiar ao ver
a cena da mãe a liquidar
pacotes de algodão
para sanar hemorragia?
Quem foi aquela gente medíocre
que teve coragem
de tecer comentários
sobre aquela cena
que não viu
num final de semana
que provavelmente não teve
que grudar dentes na boca
retirados pela força da doença
que atormentava o espírito
sem mesmo a criança saber?
*
Asfixia
na praia eu cavo buracos tão fundos
para garantir o guarda-sol
para prevenir o vento
eu saio da água para buscar outro guarda-sol
porque me preocupo ao vê-lo rebelde
nas mãos de uma senhora atrapalhada
e sua irmã e sua sobrinha
embasbacadas não sabem como domá-lo
todos estão de férias
eu também
todavia saio da água
para cavar outro buraco
enquanto o marido da senhora se diverte vendo a cena
eu deveria me divertir ainda mais
saio da água apressado
subindo os degraus das ondas
em direção à areia
logo em terra
corro e cavo
e cavo muito
a medida exata é de um braço
e assim as senhoras e seu marido poderão ficar em paz
com qualquer vento de mar
na praia eu cavo buracos de um braço
porque eu tive uma crise sete meses atrás
e não posso passar por outra nas férias
tensiono o ser para
garantir o guarda-sol
e não ter que sair desesperado da água
lembrando meu tio a dizer
“o peixe morreu pela boca”