Três poemas de Dirceu Villa
Dirceu Villa (1975) é poeta, tradutor e ensaísta, autor de MCMXCVIII (1998) Descort (2003), Icterofagia (2008), Transformador (2014), speechless tribes (2018) e, no prelo, couraça (2020). Traduziu Lustra, de Ezra Pound, Um anarquista e outros contos, de Joseph Conrad, Famosa na sua cabeça, de Mairéad Byrne (com posfácio de Leonardo Fróes) e “O Anjo Heurtebise”, de Jean Cocteau. Sua poesia foi traduzida em espanhol, francês, italiano, inglês e alemão, e foi poeta convidado dos festivais de Berlim, Granada e Siena, além de ter participado de residência artística em Londres e Norwich. É há 6 anos professor de tradução poética da Casa Guilherme de Almeida, Centro de Estudos de Tradução Literária.
Os dois primeiros poemas são inéditos.
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desconfio da inconfidência. céu azul em branco que pesa arrobas,
arrobas de roubo, pés de presos, ouro morto, invasão e pilhagem.
desconfio da inconfidência. conforto de alvarenga e tomás, perder
tudo e não mais. não filhos da forca: pastores do verso, senhores.
desconfio da inconfidência. da barba rente, cortada, da voz viva
da navalha de joaquim josé, jesus que ninguém é, cadáver exposto.
desconfio da inconfidência. a bíblia manca de silvério, o gosto voraz
do minério, dentista réu: que o povo, doroteu, é como moscas no mel.
desconfio da inconfidência. o falho indeciso, filho do império, o libertas
quae, o sera tamen, jugo de trabalho aos cem cativos, pela gente de bem.
desconfio da inconfidência, das rimas de ganância e do verme do
negócio; os cartórios de ninguém, disparates provisórios, hoje e ontem.
desconfio da inconfidência e dela tiro o que não tem: a voz de um vivo
devoto de são crispim, que se a tanto aprouver, corta sapatos de cetim.
desconfio da inconfidência, desconfio de março e abril: o cangaço e
o conselheiro, vivos sempre e sempre mortos, ninguém sabe, ninguém viu.
*
receita simples para o bem-viver
transformar-se numa distração de domingo: os
outros dias, como toda a gente faz, suportam-se
insuportáveis; e até domingo entardece amargo,
aquele fedor acre das segundas-feiras automáticas,
pé ante pé dos espremidos no metrô, dos gritos de
pressa e resultado no trabalho: escravo, pensa na
vida; mas sem tempo de pensar? o mundo te diz:
[segue quieto, de cabeça baixa, conta o sucesso em
cifras na tua conta: compra e cala, e torce por um
bom sono sob o silêncio de tanta telha descorada];
a roupa, deixa separada de véspera, passada e pronta:
é estar preparado para tudo, mas habituado ao nada.
*
retrato de um governador
o governador acorda, bebe chumbo
e espalha pólvora no pão.
o governador obtura suas cáries com balas,
cobre as vítimas com o sudário
piedoso de um cristo todo em sangue.
o governador é um ditador da lei do mais forte,
e tem cães de guarda que vestem farda
e não respondem à razão ou à justiça.
o governador enrola cobras nos microfones,
arranca olhos com mão em luva de pelica.
o governador quer a ordem dos corpos no chão
e protege os eleitores de si mesmos.
o governador é um homem bom em casa,
mesa & banho. usa um rodo pro dinheiro,
e faz a ronda do complexo midiático.
o governador tem mãos em todos os bolsos,
em todos os coldres, e puxa gatilhos
com a língua. o governador sabe de cor
e salteado as cidades do estado.
ao governador falta um pouco de telhado.
são paulo, 13 de junho de 2013