Três poemas de Felipe Vieira de Galisteo
Felipe Vieira de Galisteo, 37 anos, é um artista gaúcho, natural de Porto Alegre. Reside em São Paulo desde 2010. Poeta, dramaturgo, professor, ator e diretor, escreveu cerca de 20 textos e adaptações teatrais, além de ser autor de extensa composição poética. Em 2008, recebeu da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre o Prêmio Açorianos de Melhor Dramaturgia, prêmio a qual foi indicado também em 2011. Três Maneiras de Gritar em Silêncio (2019, Kotter Editorial) é sua primeira obra publicada.
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Insônia
1.
Quero reaprender a dormir à noite…
Olhos tranquilos respirando silêncio.
Vozes desaparecendo na escuridão.
Memória desgruda da minha pele!
Não desejo o sabor amargo das horas,
muito menos a indigestão dos sonhos.
O cheiro de um abraço que falta
inquieta a calma da chuva.
Cada gota que cai são os anos
que perdi e continuarei a perder.
Cada tiro e latido na rua deserta
desperta a dor que insiste viver.
A casa, a cama, o corpo, a chama
(re)clamam pesadelos.
Concerto fúnebre de fantasmas ébrios!
A insônia é o que eu nunca esqueci
cobrando de mim as ruínas do dia.
2.
A insônia é uma espera
Não pelo sono (aguardo para quando acabar)
Não pelo sonho (escondo por trás de um olhar)
Espero o sol despertar a rotina
Espero a voz macia dos pássaros
Espero o silêncio silenciar aos poucos
Espero o final de um livro que não terminarei
Ou o fim de um filme que não suportarei
Espero por poemas que morrerão antes de mim
Sobretudo, espero o cansaço dos pensamentos…
E que ao longo do dia que se inicia
Mesmo que em apenas um breve momento
A sensação de espera acabe, enfim…
Esperanço a noite me recomeçar
3.
Achei que teria sono
Mas tive poesia
Meus sonhos ficaram despertos
E vieram me visitar
Há tempos não os via
Trouxeram memórias e absurdos
Disse o analista:
“Sofres de insônia e melancolia”
Não, não era depressão
Eram metáforas!
Simples devaneios noturnos
De quem diz com palavras
Aquilo que o silêncio vive…
4.
O som da gota num copo d’água
Caí contínuo eco e continua cai continuo eco
O ritmo das palavras na meditação do poema
A mão cansada amansa, mas não alcança mais
O poema caça o poeta caçando poesias
Adormece na paz do corpo
Enquanto computo a dor dos dias
Na dor meço o que a tormenta faz no espírito
Atormenta como um jazz, o ritmo jaz, empírico
Recomeço a contar
Medito água a conta gota
A conta esgota
O esgoto conto que ecoa
Esgoto o corpo, o computador, o dilema
O som não é poema
A mão não é poeta
Enquanto canto o encanto da caçada
Casada a poesia e a tormenta
Continuam o copo o corpo o eco
O ritmo que transborda do silêncio
5.
A madrugada cava em meus olhos
Procura cega noite funda o poema
O corpo reabilitava o sono agora
Habito as palavras despertas
Erradico o sonho que irradia
Erro o dia (e a noite), errôneo tempo
Errando o sentido de ida e de vinda
Vida errada entre as horas infindas
Alucino em verso, repouso inverso
Desconverso a prosa do silêncio
Grito insônias em buracos negros
Universo de olhos que não cessam!
*
Só desejo dançar na leveza de teus passos de menina
Se minha voz pudesse atravessar as brumas do silêncio
E meu coração pudesse explicar em palavras
O que as palavras não sabem dizer ao coração
Eu descansaria o peso de minhas mais sinceras aflições
Sobre o travesseiro vazio de meus pensamentos
Por entre ideias sem dor e decisões sem medo
Cantaria os sonhos que esqueço todas as noites
Encontrando-me obscuro no alto deste edifício
Meus olhos incompletos vogam sobre a densa neblina
Não sei ao certo o que vejo, não sei as imagens que sinto
E as dúvidas que despencam dentro do abismo de mim
Arranham a beleza com a inquietude e seus gritos
Quisera eu não sentir peso algum além da gravidade
Seria um prazer sem esforço, quase uma deidade
As mãos, entretanto, suam, o peito engole seco o frio
E não posso controlar a velocidade de meus delírios
Só desejo dançar na leveza de teus passos de menina
Mulher que encontrou na dureza de meus olhos um sorriso
E o devolveu à boca na doçura simples de seus beijos
Há tanto brilho em suas pupilas encantadas
Há toda essa chama que bagunça, cura e incendeia
As cores que desbotavam entre as cinzas de minha ausência
Que não posso me permitir vulnerável à insensatez
Mas preciso dizer que às vezes eu também anseio e tremo
Assim como preciso dizer quase como num grito
Que não há um só segundo do dia – mesmo o pior deles –
Em que o amor que sinto não transborde de dentro de mim
Sou roto, torto, pouco, pó, tanto e tão pouco…
Mas é tudo o que tenho e é teu… Todo teu!
*
A gente fica com raiva
A gente fica com raiva…
Arrancam-nos o poder de decisão
Como quem diz: “não vale nada!”
A gente fica com raiva:
Começa a falar pelo fígado
E se assusta com os próprios gritos.
A gente fica com raiva
Quando nos cobram com o medo
Nosso salário e nosso tempo.
A gente fica com raiva
Se nos calam simplesmente
Porque tentamos dizer a verdade.
A gente fica com raiva
De todo esse lixo e de todo luxo
Porque é muito desleixo com a gente.
A gente fica com raiva
Quando nos aprisionam injustamente
E nos dizem: “melhor que morresse!”
A gente fica com raiva
Vendo o sangue escorrer fácil
Nas trincheiras da indiferença obediente…
A gente fica com raiva
Quando a gente trabalha tanto
Para ser queimado e soterrado
Por um prédio em pleno 1º de maio!
A gente fica com raiva
Quando falam que é nossa culpa
Sermos uns fodidos e mal pagos!
A gente fica com raiva
Porque, sem dinheiro, não pode recorrer
Nem à Lei e nem a Deus!
A gente fica com raiva, mas não morde!
E daí a gente fica com muito mais raiva!
Então nos dizem: “não adianta!”
E lá no fundo, no fundo, no fundo,
Exaustos de tantas lutas e derrotas,
Nós sabemos que não adianta mesmo…
E a gente fica com mais raiva ainda
Porque insiste em levantar
E seguir sabe-se lá pra onde…
A gente fica com raiva
Porque o amor não move porra nenhuma
Nesse mundo que mastiga a gente
Cheio de ódio nos dentes!
Veras
Muito bom