Três poemas de Flávio Morgado
Flávio Morgado é poeta. Nasceu em 1989 na cidade do Rio de Janeiro e é autor de um caderno de capa verde (7Letras/2012), uma nesga de sol a mais (7Letras/2016) e do livreto Refinaria da cólera (Edição Megamini – 7Letras/2019). Atualmente vive em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, e escreve para a página apalavrasolta.wordpress.com
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ainda posso rir
lamento meu lago suíço
e minha hora do chá;
colecionar tinteiras e
escrever a noite solene.
mas aqui é tudo
como se pusesse o mundo ao contrário
apenas porque resiste o real:
é imaginar
como se pudesse
um Marcelo Reis de Mello
na missa das sete;
ou ver Derrida
cavalo de uma Maria Mulambo
em Quintino;
ou encontrar Ferreira Gullar
no Werner Coiffeur
retocando o channel;
revezar com Nietzsche
na Smart Fit,
esse peso metafísico;
ou escutar um Olavo de Carvalho
lendo Rimbaud
e entendendo ser vil –
estúpido é esse impossível.
eventual é essa surpresa,
que sempre constrangida,
a vida ainda nos permite
pensar em um poema
no ônibus 940
(Ramos – Bonsucesso)
– via Madureira.
*
refinaria da cólera
áries, touro, virgem…
ninguém nunca tem culpa
à cínica fotografia dos astros.
todos carregam a vaidosa
missão do autocentramento
frente ao caos.
a traição não está em vênus
mas nas vigas, nas vezes
de nossa educação pequeno-burguesa
que admite o discurso antes do
desconcerto. e responde ao espanto
com seu sorriso amarelo e pacífico.
“nós por nós” até o quinto dia útil.
para cada suco de luz
a petroleira derrama
duas mil doses de diesel
sobre o oceano atlântico.
para cada iogue
um homem do campo entra na mendicância.
signo fixo, o desespero
é um bloco de carnaval no ano
dos que propõem dias à liberdade
como reparo ao consentimento patronal.
o homem não sabe plantar batatas
mas leu Adorno e se comove
com a miséria em preto e branco.
toda raiva é justa,
sobretudo nos filtros do instagram
eu vi os expoentes da minha geração
ofertarem odes ao rivotril.
– o rei está nude.
Ginsberg busca o filho no Playcenter.
plutão is coming
(o fascismo sempre esteve).
antes da mais-valia,
os operários rezam.
severa é a ansiedade contra o muro
os semáforos do tempo acendem meu sinal:
a vez do lirismo
tem sido refinar uma cólera.
*
Oyá
que está em Marielle
“Nesse momento mágico da dança de Oyá,
as feridas de Omulu pularam para fora de seu corpo,
transformadas encantadoramente numa chuva de pipocas
que cobriu todo o palácio de Xangô de branco,
revelando por detrás de todas aquelas chagas,
o jovem e belo Obaluaiê.”
(Vovó Cici)
hoje eu sou incapaz
porque ainda choro.
e sei que o tempo
da queda
de uma lágrima
é a reposição da vontade de luta.
assumo a hora bruta desse real
mesmo quando minhas mãos
cavam seu corpo como uma lenda
e o ergue – ampla bandeira
sobre os meus, sobre os nossos.
hoje vi o tempo deles
se impor sobre as tempestades
como um plácido sim
ao absurdo, ao silêncio e ao injusto:
uma aluna negra
– histórica estranha
de qualquer sala de aula desse país –
teve seu turbante de umbanda
rasgado aos risos
por quem baniu o delírio e delega,
cínico, a hora de um deus.
(não dói em sua fé, que ainda
pode rogar uma praga
e pede sua vez na dança
no que poderia apenas desistir)
dói no corpo, dói no nome.
dói no entendimento
da cor. e em como é longo
o medo de se ter uma vida
ao estalar do açoite.
acerta em cheio minha consciência
– funcionária pública da esperança
e ingênua condenada dos dias:
por isso te lembro.
alerto ao consentimento
que inunda as ruas
dos mesmos que pagam pra ver
o preço (não o custo)
de mais um corpo negro
exposto, controlado e morto.
tento lhe dizer por ela,
cavuco heranças, redimo culpas,
elejo o nosso passado.
e sabemos ser pouco.
mas também sabemos ser ato.
a aluna é negra
mas a caravela é branca,
o professor é branco e
essa caneta também é branca
– a surda cor da propriedade
que agora, exercida na vida,
se sabendo não permitida,
minha aluna sabe o que é
o Brasil: esse Omulu, eterno enfermo
– pai da metástase e da máscara
que reclama o belo ao recalque da redenção.
sabe agora
que somos uma democracia
que fuzila vereadoras.
(essas vereadoras
que parecem orixás
e esses reis que parecem
quiumbas)
somos também (agora)
esse futuro aberto,
que com alguma justiça,
deve arder na raiva
de suas mãos
densas e única possível
à reescrita dessa nova Ijexá:
teu nome é legado.
e teu corpo, um rumor de vitória
que nos chegaria
como um beijo negro de Oyá
sobre nossa face constrangida:
será então esse o dia
que talvez nos perdoe.
ou talvez nos reponha
não pelas chagas,
mas pela a alegria.