Três poemas de Gabriella Casa Nova
Gabriella Casa Nova é natural de Miguel Pereira, região serrana do Rio de Janeiro. Tem 25 anos, é educadora, mãe, ex estudante de Cinema e Audiovisual pela UNESA, bailarina, videomaker amadora, filósofa de mesa de bar e ainda consegue encontrar tempo de se achar poeta.
***
Agosto
a noite mais fria do ano
me sinto bonita
estou azul com todas as noites de agosto
mas escovei os cabelos pela manhã
estou bonita ainda que pela metade;
pelo resto da noite
visto minha melhor camisa de festa
e brinco de fazer poesia às cegas
eu e os realistas estamos sempre em conflito:
natural,
amo demais.
é como quando falamos em línguas
conversando com os anjos ou com a loucura
e,
afinal
não fosse Artaud pra me entender,
eu carregaria a rispidez de quem sempre olha de volta mas não sorri
meu sorriso é metade ironia / metade soberba:
fui apresentada intimamente ao abismo
fundimo-nos
e fizemos as pazes com a psicose.
*
Festen ou Laços de Família
Estiveram todos a postos por muito tempo
sentados à mesa, em família
no banquete das trincheiras:
só esperando o tempo passar
Era insustentável tanta verdade
tanto silêncio
tantas distâncias…
Eu cheguei vestido de rei carregando num leito de morte ambulante toda a intensa alma do Cosmos
e uma flor do Sol de Virgo suntuosa na lapela
Eu, como o próprio factótum da humanidade, servi todos os pratos sob os comentários maldosos de que se a religião tivesse vindo antes da poesia o mundo estaria salvo
Espantei uma lágrima do canto do olho e lá havia um semideus que só vi de relance
e havia ainda aquela canção pagã que não consegui tirar da cabeça e continuei assobiando pra sempre
amarga
por entre os dentes
tendo a certeza de que o que veio primeiro foi o desespero, isso sim
Tudo ok, vamos com calma –
ainda não precisamos declarar falência…
A verdade é que falta o feeling para todos nós
swing mesmo, jogo de cintura
A emoção dessa insana pulp quotidiana, antes do fim da noite do homem
antes do fim da história,
já tinha se transformado em desolação e gatilho pro cansaço eterno:
assim, o livro ficou esquecido às traças
Tornamo-nos moribundos em vida e tive mais uma certeza:
todas as vezes que alguém me tirou pra dançar foi por pura exasperação
Foi então que desceu até mim a visão de um anjo:
não era azul, não tinha asas – tinha sangue na boca
e eu me lembrei de todos os poemas do verão passado,
apenas singelas reminiscências que guardei nas pontas dos dedos…….
Ultimamente tenho pensado muito no caráter melancólico das coisas
na dificuldade de pentrar a superfície e perceber alguma delicadeza maior no mundo…..
*Neste momento noto um espelho esquecido ao fundo de um corredor sem saída
a figura refletida nele tem o rosto pintado e o pescoço envolvido por uma fita branca
junto com o olhar de reprovação resplandece a voz que revela o espanto varrido pra baixo de cada tapete da sala de jantar:
– Shhhhhh, no final das contas tudo isso é pequeno diante do dilúvio que está por vir
vossos desejos e aspirações são pequenos
e ele vem pra apagar o incêndio da alma!!!!!!!!!!!!!!!
A quem queremos provar qualquer coisa que seja????????
Enfiem esses discursos de pós modernidade no rabo!
Alguém já se perguntou pra onde vão os sonhos dos quais nos esquecemos todas as noites? –
Aperto, então, a fita ao redor do meu próprio pescoço
HOC EST CORPUS!
Com o grito primal é que ofereço o corpo
tomo um trago do sangue do cordeiro e pergunto aos bons convivas, sem precisar abrir a boca, antecipando a indigestão:
– e então, pra onde é que vão os sonhos?
Um a um, eles finalmente abandonam a sala
após tanta espera pelo simples passar de um tempo que não (n)os pertence
Antes de apagar a luz, o último deles
(talvez minha mãe, eu mesma ou um outro)
silencia a canção de meu assobio amargo e adverte:
– Agora faça silêncio, Deus foi dormir.
*
é dia 36 do ano do cavalo de acordo com o calendário sabático
estou com um humor sinistro
e ainda é agosto pelos próximos 3 meses…
dentro de mim ressoa sem parar algo como uma lira dos anjos, só que atonal
um resto de ressaca na boca misturado a possíveis palavras
primavera nos dentes e na alma – me pergunto as vezes se é ciência…
trancados na sala de estar estamos eu e meu monstro de estimação num breakfast à luz de velas
por baixo da porta irradia uma fraca luz de um rosa sacro
meio bobo, quase tonto
imagem feia em 3×4,
gostaria que o abajur estivesse aceso…
temos os 2 um nó na garganta
damos as mãos para uma oração e algumas vontades etéreas me passam pela cabeça
o túmulo de Rimbaud, melodias de ópio, sonhos, flores
(o que será que a Kabbalah acharia disso?)
não importa, nada
se pudesse escolher estaria num road movie
vivendo em um amarelo intenso
transcrevendo por aí os fetiches suicidas de quem ainda crê na morte;
máscara kabuki no lugar do rosto
e não mudaria minha religião,
não por vocês.
em verdade vos digo: nunca acreditem em minhas provocações menos delirantes
tenho desejo também de abraçar, de ficar
pena que não se vive muito além disso…
ou melhor:
só se vive duas vezes
“such a shame”.