Três poemas de Guilherme Gontijo Flores
Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) é poeta, tradutor e professor na UFPR; autor de brasa enganosa, Tróiades (www.troiades.com.br ), l’azur Blasé, Naharia e carvão : : capim; traduziu Sexto Propércio, Safo de Lesbos e Robert Burton, dentre outros; é coeditor da revista escamandro (www.escamandro.wordpress.com) e membro do grupo Pecora Loca. Os poemas abaixo são inéditos.
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Canção das flores
(A partir do egípcio. Papiro Harris 500, terceira série)
Começa um canto de alegrar o coração
1
portulacas em flor • meu coração no teu aporta •
por você eu farei o que ele quer • quando estou nos teus braços •
minha prece é pintar os olhos • te ver me alumbra os olhos •
me aperto só pra ver o teu amor • senhor do coração •
o amor das horas ao teu lado • quem dera elas corressem para o eterno • dês que deitei contigo •
seja em tristeza ou alegria • não se deporte
2
campânulas conclamam • e logo alguma campa •
sou tua grande irmã • sou tua como o prado •
cultivado de flores • com tantas plantas perfumadas •
como é linda a ribeira • que tua mão cavou • pra refrescar do vento norte •
ponto suave do passeio • com tua mão na minha •
o corpo aflora • sorri meu coração • enquanto andamos juntos •
ouvir tua voz é vinho de romã • eu vivo por ouvi-la •
se num olhar qualquer te vejo • será maior sustento • que toda comida do campo
3
oréganos conclamam • à tuas guirlandas vou regando •
se bêbado retorna • ou dorme no teu quarto •
faço massagens nos teus pés • quando as crianças sonham •
pela manhã eu gozo • saúde vida dentro dos teus órgãos
*
As estantes eu levo nas costas
desde pequeno
cruzo uma rua bom dia
ajeito do lado esquerdo
bom dia a mão direta erguida reta
a esquerda se acerta com o peso
Cansa levá-las vai sem dizer
cansa tê-las nos lombos de dia
por isso aperto o dedo em tarraxas
e temo que soltem
Posso trazê-las por tudo
por isso temo que soltem
cruzo uma rua bom dia
a mão direita erguida reta
bom dia ajeito do lado esquerdo
Vai sem dizer canso em levá-las
tê-las nos lombos de dia cansa
aperto o dedo em tarraxas
por isso cruzo uma rua
bom dia a direita erguida
mão reta ajeito do lado
esquerdo escorrega bom dia
Temo que vejam tarraxas
bom dia desde pequeno
as estantes eu levo nas costas
nos lombos vai sem dizer
*
Tout est plein dans la nature
Cada porção da matéria
seria concebível
como um jardim pleno de plantas
e como um tanque pleno de peixes
mas cada galho da planta
cada membro do animal
cada gota de seus humores
seria ainda
um tal jardim
um tanque tal
(Nem geração inteira nem morte perfeita)
E mesmo que a terra e o ar
intercalados entre as plantas
do jardim
ou a água intercalada
entre os peixes
do tanque
não seja planta nem peixe
ainda assim contêm
algo
deles
mas amiúde duma sutileza
para nós imperceptível
(Cada alma conhece o infinito
conhece tudo mas confusamente)
Assim como não há nada
de inculto de estéril
de morto no universo
nada de caos nada
de confusão além
da aparência mais
ou menos assim
como talvez num
tanque a certa
distância se veria
o movimento confuso
e turbulento por assim
dizer dos peixes
no tanque sem discernir
os próprios peixes
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Foto tirada por Rafael Dabul (detalhe).