Três poemas de Henrique Provinzano Amaral
Henrique Provinzano Amaral é mestrando em Literatura Francesa pela USP, desenvolvendo uma pesquisa sobre a obra do pensador martinicano Édouard Glissant. Entre 2014 e 2017, foi um dos editores da Cisma – Revista de Crítica Literária e Tradução. Em 2018, na primeira edição da FLIMA, apresentou duas traduções (no prelo) de poemas de Jan Mapou, um dos mais importantes poetas haitianos que escrevem em crioulo. Atualmente, Henrique prepara seu primeiro livro de poemas.
A seleção abaixo foi chamada de “Três poemas carnais”.
***
Corpus
I.
Feito um livro grosso
– um atlas de anatomia –
abro as carnes do peito
e
sem receio
olho as coisas lá dentro
os pulmões o coração o in-
testi-
no
grosso delgado o baço
o duodeno
mas, cuidado!
o medo faz morada sobre os rins
e como uma traça
cava espaços brancos
vazios
por cima das tripas
II.
Há quem se refira
a um corpo sem órgãos –
pois o meu
os tem aos montes
feito um viveiro selvagem
um aquário quente
e cheio de sangue
III.
Um dia, quando criança,
ganhei um peixinho numa feira.
O peixinho era vermelho e delicado
e vinha dentro de um saco plástico.
A moça da feira me disse sorrindo
que o peixinho devia ter um nome
e viver sempre sozinho.
Agradeci e saí andando encantado
com o saco plástico na mão.
No meio do caminho, batizei o peixinho
de meu coração.
IV.
Lado a lado
dormem os pés
como no ditado
No meio das pernas
ficam os joelhos
como na piada
V.
Quem tem cu
certamente
também tem dedo
VI.
Entre cariados e cariátides
meus dentes
colunas de um templo
libado
da deusa Língua
(mas não há previsão do tempo possível para o céu da boca)
VII.
Recuar
até a região em que
a linguagem se faz língua
e palato e boca e dentes
e se liquefaz
na saliva
Nesse lugar
engolir em seco
as palavras carne
cadáver
sangue morte
e sexo
VIII.
Os anticorpos protegem
os corpos contra
os antígenos
Assim como os antídotos
certos porcos ou
uns poucos venenos
IX.
Olhar nos próprios
olhos –
eis
o primeiro abismo dos corpos
Felizmente
costumam ser sólidos
o medo
e a maioria dos espelhos
X.
Tudo pulsa
as mãos
as veias
as têmporas
o ânus
o pênis
as pernas
os pulmões
os tímpanos
a boca
os lábios
a garganta
o baço
o fígado
os braços
o cérebro
os pulsos
tudo pulsa
– só o que não pulsa é o meu coração
*
fogareiro
feito alguém que despejasse cinzas
sobre umas poucas brasas
eu despejo cinzas
sobre estas poucas brasas
do meu coração
não por essas pobres rimas
(centelha delicada)
nem pela imperfeita comparação
mas precisamente para
encobrir esta palavra cor
ação
como faziam certos índios
durante a coivara
ou como você faz
quando diz
eu não tenho coração
*
o outro
sobre a areia da arena
entre sete portas sem chave
(porém trancadas)
sob a vista cobiçosa da turba
aqui estamos
ó divino touro
apenas tu e eu
a sós
ó rico touro encantado
se ao menos nosso amor se erguesse
em estandarte e libação
e no alto céu se juntasse ao rumor encarnado das nuvens
mas não:
aqui estamos a sós
tu desejas meu sangue
e eu desejo o teu
contudo
agora é tarde
pobre touro escarlate
o público já nota a labareda de ouro
e
diante de seus olhos perplexos
a fome que nos consome
tragicamente
em fogo
em névoa
em corpo
em sexo
(Conta-se que certa vez
no oriente distante
uma rainha louca deu à luz uma estranha criatura.
Depois de vê-la
o rei cometeu suicídio
os sacerdotes, incrédulos, proferiram blasfêmias
a própria rainha arrancou os olhos com as mãos ainda sujas de sangue do parto.
A criatura, porém, chorou e chorou
e para sempre daquele jeito ficou
metade homem
metade outro.)
____________________
Foto de Thiago Mattos.