Três poemas de Juliana Krapp
Juliana Krapp nasceu em 1980 no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha como jornalista. Inédita em livro, tem poemas publicados de forma esparsa em revistas e antologias.
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No ano da gripe
Há quem teça há quem corteje
exílios apunhale
os veios da malícia há quem crie há quem
tenha pressa
Já nós
cultivamos apenas o hábito
de colar o ouvido às conchas
procurando
desentranhar um uivo uma fenda uma
possibilidade de voz talvez a única
que ainda ressoe
Colamos o ouvido às conchas
porque é irresistível
perscrutar o abissal
depois que já foi corrompido
e trazido à superfície
em forma de adereço um tipo
de relíquia que em nada lembra
o fato de ser também sepulcro invólucro
nacarado desterrando-se
desde as bordas
Colamos o ouvido às conchas
que foram extirpadas do fundo
alvoroçado de uma alteridade
e viajaram até aqui
para restituir eloquência
ao canto canônico em que ainda pulsam
balbucios e luminescências a memória
de outras vidas
Eu mesma catei uma delas, digo
à minha filha é como colher uma flor e então
ser surpreendida
pela impossibilidade de detê-la com o que guarda de arisco uma flor
que contém som no lugar de seiva
Colo o ouvido às conchas e atesto
que prosseguem respirando
As paredes permanecem tensas: hirtas
À nossa volta as pessoas morrem
como afogadas mesmo longe do mar a asfixia
prolifera cada vez mais rápido infiltra-se
nos interstícios e chispas nos charcos
que fundam os atritos
E então nós nos escondemos
e colamos o ouvido às conchas
para intuir
o bailado das algas abraçando a quilha
do naufrágio o trânsito de cardumes
diante das escotilhas a delicadeza
de uma atmosfera sem gravidade
nem jorros de sangue
Eu colo o ouvido à concha
porque preciso roçar a boca de alguma fundura
e extrair dela não o hálito mas o que vem depois talvez
possamos chamar um jogo a submersão
de um mundo noutro mundo
Colamos o ouvido às conchas
buscando o cerne
do que seja casa a coisa
ainda viva
apesar de morta o rebentar
esponjoso dos arrecifes ao redor de onde nadamos
lábios inchados de sal
querendo casa mas não qualquer casa querendo
o jugo das torrentes não a cadência o soco
da onda batendo na rocha eu colo
o ouvido à concha
procurando espelho
a casa dentro da casa meu reflexo
tão íntimo do labirinto feito casca a casca
provendo o rangido
que vem do vento sobre os abismos
Eu colo o ouvido à concha
para lembrar que tenho dentes
e que
o que guardam
ainda guardam hoje
muito vivo
e teso brilhando
apesar de morto
*
Degraus de Colônia
Fiapos de tecido nos galhos dos plátanos
O rio enorme. Foi o que você fotografou
pousado sobre as ripas do deque
como uma rocha
uma exigência do tempo
ou o pensamento
que ainda era puro como um vaso
batismal
se intrometendo na mata
Nas silhuetas muitas matizes terrosas empreendiam
sua busca perpétua
pelos apaziguamentos
Línguas estrangeiras e embarcações luziam
como luxúria. Bulbos, capim, vegetação
displicente tentava eriçar-se sobre os telhados mesmo raízes
rebentam ante o interdito havia torres mas não
havia nada nem ninguém
que pudesse culminar em vista
ou rompante de descobrimento
Talvez fosse simples ter acesso
aos degraus. Talvez não. Nenhuma
possibilidade de enfiar a unha sobre a casca
fazer trincar a contenção
para desmantelar a inteireza
viscosa da gema
Você me escolheu para dormir ali
incrustada
no mesmo oco onde florescem as oratórias
e se enregelam as superfícies adormecer sob a mira
de casarios obliterando destroços o lugar
perfeito para escandir
a marcha do mundo — expansão
e extravio
É engenhosa afinal
a indolência do olhar
à mercê da história
com todo aquele fio
d’água rente às canaletas
de mais uma península
que conhecemos tão pouco
*
Escritura
mosquitada sobre a poça polpa
arrochando o caroço
noites em que a terra se encharca
e os nervos irrompem
para entrever
o viço do casulo
— crânio
moendo
ardiloso
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(Fotografia de Lia Krapp)