Três poemas de Lívia de Lucas
Lívia de Lucas tem 22 anos, é professora e formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Anda metida com poemas e pensa em publicá-los sob o nome de Impreciso azul.
***
Alagadiça
O descanso de que preciso
envolveria não lembrar
botar a cabeça para fora
da névoa de flashbacks
e inspirar fundo
renovar o ar parado que habita os espaços estreitos, escuros
há meses nos meus pulmões
Dentro de um corpo é sempre escuro
o ar tão saturado de passado
e de tudo o que fui capaz de apreender com cada víscera
O que escapou de mim, ao contrário, sacode a copa das árvores
flana por aí
e é a matéria mesma do mundo
aquilo que nos emociona nas fotos
o encantamento do fogo avançando sobre o tabaco
o fato de, no verão, anoitecer sem que a gente perceba
é tudo o que me escapa
Eu só faço dormir
neste torpor quente de lembrança sobre minha cabeça
e cada canto parece querer comunicar mensagens suas
abrir fendas temporais, me transportar para qualquer sorriso, cabelo ao vento ou refeição compartilhada
A casa é permeável a esses nós
convida-me a dormir como quem diz “vamos”
Quando a névoa baixa, ciclicamente, exigindo tudo de mim
impondo-me suas nuances, macerando minha língua, fazendo escorrer óleos, perfumes, alguns poucos sons
eu durmo empoçada na saturação
*
Cartão de navegação
Muito recentemente
reconquistei o território vespertino dos cochilos
faltava-me, com você, desprendimento
para fazer passagens
Quis atravessar o Atlântico
e pousar suavemente sobre áceres vermelhos, alaranjados
tingidos de frio
mas alguns sonhos só são capazes de vergar
Talvez já houvesse vento em mim
leveza, leviandade
e outras coisas que hoje desejo arduamente
O que não havia, isto é certo
era um tipo de dinamismo luminoso
que remanejasse os móveis da casa
e todos os líquidos do meu corpo
Achei que dançar forró
me iniciaria nessas quenturas úmidas
e que este algo se desdobraria
caudalosamente
até o final
ainda não era tempo
Concentro-me neste momento em ter
frente ao mundo
estrutura de veleiro
*
Partição
Se o dia congela por um instante
abrindo espaço às ideias impossíveis
é comum que eu tenha
um devaneio histórico
um arrebatamento
ao tempo e ao espaço daquelas de quem ascendi
Desconheço suas pálpebras, os calos de suas mãos
brotados de lugares imprecisos da península itálica, com fumaça e colheitas – sei que disso carrego um tanto
Houve também aquelas de Granada e Almería
litorâneas
muito provavelmente mouras
E tantas outras
desconhecidas dos documentos precariamente datilografados do começo do século
Imagino-me posicionada num mau lugar do drama familiar
ou, no mínimo, sofrendo com a justeza de uma linhagem já difícil
Receio que algo como uma maldição esteja abatendo-se sobre nós há gerações
A única maldição é não conhecer nossas maldições
e isso os nativos do mundo compreenderam bem
Tudo finda com a sensação de que estou
anacronicamente
chorando as mesmas lágrimas neste apartamento