Três poemas de Lu Menezes
Lu Menezes (São Luís, 1948), é poeta e pesquisadora. Publicou O amor é tão esguio (ed. independente, 1980); Abre-te, rosebud (Sette letras, 1996); Onde o céu descasca (7Letras, 2011); Gabinete de Curiosidades, em parceria com Augusto Massi (Luna Parque, 2016), e Querida holandesa de Vermeer (Luna Parque, 2020), além do ensaio Francisco Alvim por Lu Menezes (Eduerj, coleção Ciranda da Poesia, 2013).
A seleção abaixo foi feita pela poeta. Os dois primeiros poemas integram o livro Onde o céu descasca, o terceiro integra o livro Gabinete de Curiosidades.
Lu Menezes realizou uma pequena (mas significativa) alteração no poema “Linhas de transporte”: onde se lia “rumo à extinção — a Terra continua” na versão publicada em 2016, lê-se agora “rumo à nossa extinção? — a Terra continua”.
Isso desfaz, segundo a poeta, um equívoco antropocêntrico.
***
Lugar
Abarrotado de azul (do alto, único,
elétro-esférico-onírico) este lugar
que algo extraordinariamente distante
chamado estrela chamada sol
afeta constante e intimamente;
se “fato puro e conto de fadas”
ou fato impuro e conto sem fadas;
se féerie de contos de fatos,
com incontáveis contos
de incontáveis fatos;
se tanto fez e tanto faz,
decida ou não, o nobre freguês.
*
De volta à terra
“Você abre a escotilha e sente
o cheiro da realidade. A realidade cheira
a adega mofada e meia suja no porão da vovó”
— ele revela —
saudoso da gravidade, todo chegado
ao chão.
Na volta do passeio sublime-ofuscante
depois de ver
a Terra nascer,
o sol
de hora em hora morrer
e dez vezes mais estrelas e estrelas
dez vezes mais brilhantes;
invadido
pelo efeito olfativo
desse contraste cósmico que a gente,
sem-nave, apenas pressente,
o viajante
ao respirar reconhece
já no grão vivo do ar
a graça do que passa.
Aspira, então,
por seu passado pedestre
em caverna caseira hibernante
— adega, porão —
cela onde a sombra
— liberta do carcereiro solar —
uma prole rasteira vulgar tenha feito vingar.
Depois de chegar na Terra e farejá-la
— chegar ao sofá —
ligar a TV e tirar o sapato do pé
é tudo o que o astronauta quer.
*
Linhas de transporte
Abomino a Revolução Cultural chinesa
que, súbito, além de tudo baniu o bordado
— remando contra a sua correnteza inocente
tão milenarmente forte que já derrubado o bote.
-x-
Da agulha chinesa imitando pintura
gosto quando se entrelaçam
fios de seda e cabelo animal (pelo)
ou fios de seda e pelo vegetal (capim)
— a exemplo desse sedoso leão
sentado em repouso contemplativo
quase sorrindo, tanta a suavidade
que o cerca no capim dourado
e na fulva juba como se todas as fibras
fossem só linhas de materiais diversos.
-x-
A propaganda da linha LUNA avisa que ela armazena a luz
e faz brilhar bordados no escuro. — Pousado no solo lunar
vê-se um enorme carretel; ao longe — a esfera azul
que bordada não me afetaria
tanto quanto saber extinto
— nas asas atrofiadas — o voo
da mariposa do bicho-da-seda
há três mil anos “domesticado”.
Com ou sem linha LUNA
rumo à nossa extinção? — a Terra continua
a girar enquanto pós-conquista lunar
seu brilho — a cada cópia
não se domestica? A aura
não se opacifica?
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(Fotografia de Pat Kilgore [detalhe]. Originalmente colorida)