Três poemas de Márcia D’Angelo
Marcia D’Angelo por ela mesma: “Nasci em São Paulo em 1948. Sou doutora em História pela Universidade de São Paulo e atualmente professora aposentada do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo. Me sinto ainda professora, historiadora e poeta. Despertei para a poesia em 1998 e, em 2003, participei de um Concurso de Literatura no CEFET-SP, quando fui laureada com o primeiro lugar com a poesia “Iraque… Massacre” e em terceiro lugar com “Inefável”. Minhas publicações estão ligadas à História Econômica (“Reestruturação Produtiva e Relações de Trabalho – 2002”) e Educação Profissional (“Da escola de aprendizes artífices à Escola Técnica Federal de São Paulo” – 2005 e “Cem anos do IFSP” – 2009). A poesia é para mim o contraponto da racionalidade acadêmica. É abrir o inconsciente para fazer fluir as metáforas.
***
O Vento e o Tempo
O encontro consigo mesmo
As desolações e inaptidões
O cortejo de ilusões e desilusões
As grandes sacadas elaboradas
O micro e o macro, o simulacro
Tantas memórias pinceladas
As alegrias e tristezas formatadas
A fuga para dentro
Um certo desalento e arrependimento
O que fazer do tempo
Das caminhadas
Das leituras desenfreadas?
Das notícias empacotadas
Das opiniões devastadas?
O vento uiva forte
Como que avisando o norte
Dando suporte ao peso dos pensamentos
Dos alentos, das certezas e dos desalentos
Confinamentos
O ruído do sopro
Tem uma sonoridade e uma cadência
Uma obediência virulenta
Uma força invisível, indescritível
Lembra um cotidiano controlado
Uma relação previsível
Somente a contradição
A contramão
A direção
A interlocução
A dialética
A estética
São tempos longos de espera
Aguardando o alvorecer e o entardecer
A longa trajetória de uma enfermidade
Veleidade
A curta duração de uma eternidade
*
O tempo da espera
O tempo calculado em conta-gotas
Mais um pouco e estarei recuperado, sanado
O caminho de toda uma vida resumida
Os minutos de um longo bordado
As horas de um tempo dedicado, delicado
Os segundos de tantas palavras escritas, descritas
Os suspiros
O passado Ah! O passado!
A espera de uma paixão
A espera de uma emoção
A espera de uma canção!
Quando voltaremos à normalidade?
Mas o que é o tempo da normalidade?
É o tempo da espera
Ou o tempo da quimera?
É o tempo das normas, protocolos
Para chegar e sair
Para entrar e sair
Para acordar e dormir
Tempo do encontro e dos desencontros
O tempo da espera
O tempo da quimera?
O tempo real e dos sonhos
Até enfadonhos
E quando vamos sair dessa realidade, Veleidade?
Quando é que vamos abandonar essa concretude/fantasia?
Esse movimento exterior e interior
Essa essência ou aparência?
Essa calmaria/velocidade
Essa mentira/verdade?
Talvez haja apenas gradações
Oscilações
Mais bruscas ou mais suaves
Senão. ..
Quanto tempo dura um prazer?
Como medí-lo em segundos?
Como medir o tempo de uma paixão, de uma ilusão?
Quantas vezes podemos nos recuperar ou amar?
A eternidade em minutos
E a memória, como é engendrada, arquitetada?
Como são elaborados os talentos,
Os adventos, os argumentos, os sentimentos?
Quanto tempo dura a saudade,
A arbitrariedade?
Quantos anos duram as conjunturas de longa duração?
Como medir seus minutos, argutos?
*
Será que basta?
E o pavor e o ardor
De uma nação destruída, combalida
Não por uma guerra civil
Mas por uma inação, contra revolução
Será que basta?
E o vexame, o retrocesso
O triste regresso
Ao desemprego, à fome
E a todos os processos anticivilizatórios, compulsórios
Será que basta?
E as alienações, as perseguições, as aberrações
De seres à margem de toda a realidade
Sem nenhuma solidariedade
Sem nenhuma percepção ou desilusão
Será que basta?
E os trabalhadores cotidianos, marcianos
Que acordam às 4 da manhã
E nos transportes públicos nem balbuciam
Seu arrependimento, seu desalento
Preferindo rir ou chorar ou comentar
As novelas globais antinacionais
transcendentais
Será que basta?
E os jovens que não trabalham no dia seguinte
Os volúveis, os avestruzes
Que permanecem nos bares até altas horas
Ouvindo músicas internacionais
E nem comentam nada
Evitam esse nada
Manipulam esse nada
E satisfeitos com a bebida e o papo vazio
Será que basta?
E as famílias provincianas
Que acordam e adormecem com os fatos corriqueiros, matreiros
Das mídias tradicionais, irracionais
Que não captam o essencial, diagonal
Será que basta?
E os moradores de rua
Agora aos milhares, aos milhões
Que percorrem quarteirões
Horrorizando transeuntes
Ocupando calçadas, entrelaçadas
Transformando paisagens
Lugares de fala
Será que basta?
Até quando isso basta?
Até quando é o bastante
O degringolar de um país antes soberano?
A vil perspectiva alucinante
A dignidade aviltada
A inexpressão orientada, manipulada
A eliminação expressada, a derrota envergonhada, anunciada?
Isso basta?
Até quando?
É suficiente?
É premente?
É adjacente?
É urgente?