Três poemas de Mariana Queiroz
Mariana Queiroz nasceu em Cuiabá, atualmente reside em Florianópolis . É mestranda em Psicologia na UFSC. Em sua composição poética, faz – desfaz – refaz um bocado de coisas: dos ofícios à cria de todo dia que lhe rasgou o ventre, ranhuras, frestas, resistências.Tem quatro livros em gestação não publicados.
***
.trabalho de parto.
a poesia é o parto
de um silêncio de pedra
que mastiguei
fui lançada ao exercício
infinito de dar à luz
ao breu da letra
nem sabia o que fazer
das vogais de meu nome
e já antevia
entre as coisas
na feição dos rostos
no dobrar das costas
nas cores dos corpos
no chão
na rua
nos órgãos
gritos secos
que me ardiam os ouvidos
e papilas gustativas
fui desde nova
uma criminosa:
era proibido entoar cantos
e dizer de certas coisas
através da língua marítima
de mulher
mesmo assim
colhia as palavras escondidas
para cobrir o não estava
permitido
de dizer
entoava solitária
cânticos proibidos
como uma sereia fugitiva
entre a noite
e folhas de caderno
a poesia
é um parto
de um silêncio de urtiga
que arde minha pele
sempre fora preciso
existir
sem existir
caminhar
sem ter pés
falar
sem ter voz
enunciar
sem quebrar os pactos
moíam-me metáforas
agudas, perenes
nos tímpanos
antepassadas
balbuciando
em uma língua outra
me entregaram nos poros
da mão
a maldição da escrita
estava plantada
no ventre da minha garganta
a semente amaldiçoada
do verbo
a poesia é
um parto
da tempestade
em alto mar
que gerei nas entranhas
*
.algum dia depois de amanhã.
enquanto caminho para o ponto de ônibus imagino o dia depois que a guerra acabasse. na noite anterior, antes de dormir, beijaríamos nossas crianças na testa e ao dizer “durmam em paz” as palavras pesariam desde nossos olhos. já não seria afronta, desprezo ou privilégio. de manhã caminharíamos pela rua e a palavra trabalho teria um gosto de ferrugem. como seria o mundo no dia após o fim da guerra? os corpos negros, femininos, afetados teriam as cicatrizes cicatrizadas pelo tempo? já não haveria laminas, generais, delegacias, mãos de polvo, senhores e patrões. já não saberíamos dizer de antemão os lugares dos corpos pelas cidades. poderia acordar sobre o teu seio cor de anoitecer sem ter que me armar antes de atravessar a porta. poderia caminhar pela cidade com a face desnuda, cicatrizes a mostra sem haver entre meus meio fios os severos vigias da sobrevivência. seria necessário buscar novos ofícios pois seria compulsoriamente demitida. guardaria a carta de demissão com bom grado. te esperaria sentada na calçada, enquanto a tarde escorre. tentativa vã de recuperar o tempo perdido. bons tempos seriam estes, de se poder tentar em vão. escutaria tua voz cantarolando. teu sorriso largo. os olhos de jabuticaba madura. teu cheiro de manacá. me contaria sobre suas novas tarefas depois do fim da guerra. as mãos ao redor da cintura. teus olhos de jabuticaba madura. cheiro de manacá. caminho para o ponto de ônibus. na superfície da pele do rosto a textura enegrecida dos teus seios. a guerra não acabou. carrego armas nos bolsos. na língua. na epiderme.
*
III
“Tenho uma mulher atravessada em minhas pálpebras” – Eduardo Galeano
balbuciei teu nome inúmeras vezes
os “erres” me coçavam o céu
da boca com a ponta da língua
os “as” seguidos fazendo sílabas sonoras
dançantes
o “esse” do segundo nome
herdado de tua avó –
soprando entre os dentes
letras escorriam molhadas
repetidamente pela cavidade bucal
engoli
lambi os lábios
.tenho um poema na boca.
as tubulações da cidade
me ardiam os ouvidos
bendição de vozes gritos ecos que exalam das sarjetas
do aço tijolo osso cimento semáforo palato –
murmuram
passos marcados por maracás
giras guiadas por atabaques
beats e rodas movidos por rimas
balbuciei teu nome um tanto de vezes
rasgava um dia que
insistentemente surpreendia
em amanhecer
alguém sempre vivo
alguém sempre morto
(nunca é qualquer a cor do corpo)
algum sexo encharcado em pétala
outro áspero e violado
rasgava mais um dia
exausto e persistente
com gosto de gente
ecos do passado
no bico de um Carcará
.tenho uma poeta entre os lábios.
teu nome
balbuciava
o alvorecer
no céu
da minha língua
o canto do teu olho me arrebatou
furtivo
derrubou dos meus lábios
uma penca de risos
meu poema favorito
a ponta das minhas
esporas
um texto pelos viscos das peles
ventos uivando dos contornos
no encontro dos poros ocos
. tenho um poema entre os lábios.
amanhecia a
semana
um grunhido
entre os dentes
helicópteros de gemidos
metálicos
mares batendo nas rochas
das paredes do quarto
algo quente
na ponta dos
dedos
o fino corte
dos pelos
papilas
gustativas
salivares
suspendendo
quadris
febris
pelos ares
balbuciei
teu nome
mulher
mastiguei
com os caninos
os suspiros
lambi
com calma –
as palavras
gosto de pitanga
maracujá
pimenta de aroeira
caju
sucupira
algo em mim era menos cimento –
caminhei pela
selva de pedra
com o sal
no corpo
uma poeta me ardia na boca.